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Tecon Santos 10: a concentração como aliada da política pública

Fonte: Agência iNFRA / Cássio Lourenço Ribeiro*
 
O Porto de Santos encontra-se em um momento crucial com a aproximação da licitação para o novo terminal de contêineres, o Tecon Santos 10. Em meio a debates sobre a estrutura de mercado ideal, surge uma questão fundamental: deveriam os atuais operadores (incumbentes) ser autorizados a participar deste certame? A resposta, embasada em uma análise pragmática das realidades globais do setor portuário e nas necessidades prementes de Santos, é um retumbante sim. Restringir a participação de quem já opera no porto, sob o pretexto de fomentar uma concorrência artificialmente fragmentada, seria um desserviço à eficiência, à capacidade de investimento e à competitividade internacional do maior complexo portuário da América Latina.
 
Uma análise dos principais portos de contêineres do mundo, como Xangai, Singapura, Ningbo-Zhoushan e Shenzhen, revela um padrão inequívoco: a escala colossal e operações frequentemente concentradas ou altamente coordenadas são a norma. Esses gigantes globais não alcançaram sua proeminência por acaso. A capacidade de movimentar dezenas de milhões de TEUs (unidade de medida de um contêiner de 20 pés) anualmente é o que lhes permite justificar e financiar os investimentos massivos em infraestrutura – canais mais profundos, berços mais longos e reforçados, guindastes de última geração e pátios expansivos – necessários para atender eficientemente os navios porta-contêineres ultra-grandes. Estas embarcações, com capacidades que ultrapassam os 24.000 TEUs, são o melhor retrato da busca incessante pela economia de escala que guia a tomada de decisão em cadeias logísticas.
 
Portos que não possuem escala para acomodar esses gigantes perdem relevância. E navios maiores, especialmente aqueles com boca (largura) maior, exigem mais tempo para operações de carga e descarga. Cada aumento de 1% no tamanho do navio aumenta o tempo no porto em quase 2,9%[1], sendo que cada aumento de classe de navio tem aumentado o tempo no porto em 4,5 horas[2]. Sem investimentos nos terminais, esse tempo adicional corrói as economias obtidas durante a viagem marítima e impacta os custos finais. Concentração em mar demanda concentração em terra, simples assim.
 
É sintomático que o Brasil, a décima maior economia global, ainda esteja fora da rota desses grandes navios. A nossa capacidade portuária é altamente fragmentada, e se destina majoritariamente ao atendimento de navios da classe Post-Panamax, projetados há 3 décadas e com uma capacidade de transporte de não mais do que 8.500 TEUs (⅓ do padrão atual). Segundo o Estatístico Aquaviário da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), em 2024, os 20 principais terminais de contêineres brasileiros movimentaram quase 14 milhões de TEUs. Para fins comparativos, nossa movimentação nacional é correspondente ao volume anual do Porto de Antuérpia-Bruges, na Bélgica, 15ª economia global, que tem apenas 0,3% do nosso território e 5% da nossa população.
 
Na Bélgica, como no restante do mundo, é difícil encontrar decisões que busquem evitar (ao invés de fomentar) a concentração de operadores portuários. Para ficar no exemplo belga, o MSC PSA European Terminal sozinho tem nove milhões de TEUs de capacidade, mais de 50% da capacidade total do porto. E isso não impediu que a PSA, operadora global, pudesse ser dona de outros dois terminais no mesmo porto: o Nordzee Terminal (3 milhões de TEUs), e o Europa Terminal (1.1 milhão de TEUs)[3], respondendo, sozinha, por mais de 13 milhões de TEUs e concentrando 75% de participação no Porto de Antuérpia.
 
O mesmo fenômeno se repete em outros portos centrais. Em Roterdã a Hutchison Ports opera dois terminais (Hutchison Ports ECT Delta e ECT Euromar, que respondem por 47,8% das movimentações do porto). A CMA CGM, igualmente, possui participação simultânea em dois terminais (Rotterdam World Gateway e Short Sea Terminals, por meio da SCR Group, sua subsidiária). Em Manila, nas Filipinas, a ICTSI controla e opera dois terminais (Manila International Container Terminal e Manila North Harbor) que, juntos, respondem por 75% da movimentação do porto. O exemplo mais claro, contudo, parece ser o de Singapura, onde a PSA concentra 99,46% da movimentação, distribuída em seis terminais, sendo quatro operados apenas por si (Tanjong Pagar, Keppel, Brani, Pasir Panjang), e dois operados em joint venture (COSCO e MSC). Não suficiente, está sendo construído o TUAS Megaport, da PSA, que em 2040 irá substituir os atuais terminais fragmentados, consolidando-os em um único, com capacidade para 65 milhões de TEUs.
 
O cerne da questão reside no conceito de economias de escala: a redução do custo médio por TEU movimentado à medida que o volume aumenta. Em um setor de capital intensivo como o portuário, com altíssimos custos fixos de infraestrutura, diluir esses custos sobre um volume maior de contêineres é crucial para a redução de custos. A estrutura observada nos portos líderes – grandes volumes, terminais de alta capacidade, operações consolidadas ou coordenadas por poucos robustos operadores – sustenta fortemente o argumento de que a concentração, longe de ser um mal a ser evitado, é verdadeiro objetivo estratégico política pública: facilita a escala e a eficiência necessárias para a competitividade global.
 
Na literatura especializada, a relação entre o tamanho do porto (ou terminal) e sua produtividade/eficiência é um tema recorrente. De Neufville e Tsunokawa (1981), analisando cinco portos de contêineres dos EUA, concluíram que a produtividade aumentava com o tamanho e que existiam economias de escala significativas, recomendando o investimento em grandes centros de carga (hub ports), e cautela na fragmentação de capacidade[4]. Sachish (1996) identificou os níveis de atividade e o investimento de capital como os principais fatores que afetam a produtividade nos portos israelenses[5]. Martínez-Budría et al. (1999), usando uma abordagem monoproduto para portos espanhóis, estimaram um grau robusto de economias de escala (SE=3.47), sugerindo que dobrar os insumos mais do que triplicaria o produto[6]. Estudos posteriores utilizando abordagens multi-produto para dados semelhantes encontraram estimativas mais moderadas, mas ainda substanciais: Jara-Díaz et al. (2003) estimaram SE=1.43[7], o que não é nada desprezível. Estudos focados na atividade de movimentação de carga também apontam para a presença de economias de escala. Kim e Sachish (1986), analisando o porto de Ashdod (Israel), também encontraram os mesmos retornos crescentes de escala (SE=1.3)[8].
 
Aqui no Brasil, permitir que operadores incumbentes, que já possuem uma base de volume e experiência, participem da licitação do Tecon Santos 10 é permitir que essas mesmas economias de escala sejam potencializadas.
 
A experiência internacional demonstra que Operadores Globais de Terminais, que frequentemente são incumbentes em diversos portos, podem trazer consigo padrões globais de eficiência e investimento, beneficiando o porto como um todo. Assim, os terminais já existentes são capazes de integrar o novo terminal às suas operações existentes, otimizar fluxos de carga, justificar investimentos em tecnologia de ponta (como automação) e, consequentemente, operar com custos unitários potencialmente menores. Ademais, os incumbentes frequentemente possuem maior capacidade de realizar os vultosos investimentos de longo prazo que um terminal moderno exige, não apenas na construção inicial, mas em contínuas atualizações tecnológicas e de capacidade. A possibilidade de sinergias com suas operações existentes – como otimização de escalas de navios, compartilhamento de recursos de apoio e melhor coordenação com modais terrestres – pode traduzir-se em maior eficiência para todo o sistema portuário de Santos.
 
Essas e outras vantagens são descartadas e perdidas de plano caso se opte por direcionar a licitação para um quinto operador em Santos, que não os quatro incumbentes[9]. Dentre as razões para esse direcionamento poderia residir no receio de que a concentração poderia trazer uma possível redução da concorrência intraporto e, consequentemente, preços mais elevados ou menor qualidade de serviço. Embora esta seja uma preocupação válida, além de ignorar os benefícios das economias de escala, ela não encontra amparo na realidade.
 
Primeiramente, o Porto de Santos não opera em um vácuo. Ele enfrenta uma vigorosa concorrência interporto, tanto de outros portos brasileiros quanto de complexos portuários em países vizinhos que disputam as mesmas cargas e rotas. Essa competição externa exerce uma pressão constante sobre os preços e a qualidade dos serviços em Santos, independentemente do número de operadores internos. Como se diz, “a carga não leva desaforo”. As linhas de navegação e os embarcadores possuem poder de barganha, e certamente não hesitarão em buscar alternativas se perceberem condições desfavoráveis.  
 
Em segundo lugar, mesmo que se considere o equivocado cenário de concorrência restrita a São Paulo, há uma série de projetos e de terminais já autorizados pelo poder público que podem em curto tempo diluir por completo a concentração dos atuais operadores. São eles: o Santos Terminais Sustentáveis, da Evolve, o Terminal Portuário Logístico[10], da Triunfo, e o próprio projeto de arrendamento de São Sebastião.
 
Em terceiro lugar, uma política de não restrição à participação de incumbentes não significa ausência de regulação. Pelo contrário, exige uma supervisão regulatória focada e eficaz, que monitore os níveis de serviço e garanta o acesso não discriminatório às infraestruturas. Temos instituições encarregadas de regulação e controle que nos permitem incorporar os benefícios da economia de escala, sem os hipotéticos e potenciais riscos da concentração. O foco regulatório deve ser centrado em resultados (oferta de capacidade, eficiência) e não meramente no número de operadores.
 
A fragmentação excessiva tende a agravar a utilização subótima de ativos caros, dificultar a coordenação dentro do porto e dificultar a compatibilização da nossa infraestrutura com a dos atuais navios e portos mundo afora. Enquanto o mundo segue buscando e promovendo concentração e escala, aumentando a competitividade, aqui seguimos pelo caminho inverso de fragmentar a capacidade. A tônica parece ser um suposto viés “micro” (competição de “A” versus “B” no porto), que acaba por sacrificar o “macro” (competitividade do país).
 
Por sorte, a legislação proíbe decisões administrativas com base em valores jurídicos abstratos, ao menos sem que seja demonstrada a necessidade e a adequação cabal da medida[11]. Essa regra deve ser especialmente considerada em discussões como a atual, e para setores como o portuário, que tem a economia de escala como aliada, e não adversária da política pública. Restringir a participação de quem já opera no porto na licitação do Tecon Santos 10 frustra a competição pelo ativo, frustra a competição no mercado, e nos alija da melhor proposta. Ao invés de temer concentração e restringir quem quer que seja, devemos focar esforços na geração real de capacidade e de eficiência. Só assim teremos um ecossistema portuário dinâmico, onde a escala e a eficiência andam de mãos dadas com uma concorrência interporto vigorosa e uma supervisão regulatória atenta.


 
[1] Guan, Changqian and Shmuel Z. Yahalom, (2017) “Port Congestion and Economics of Scale: The Large Containership Factor”, International Association of Maritime Economists, 2017, Kyoto, Japão.
 
[2] Yahalom, Shmuel and Changqian Guan (2016) “Containership Port Time: The Bay Time Factor”, Maritime Economics & Logistics, ISSN: 1388-1973, December, pp 1-17, online: September 12 (DOI: 10.1057/s41278-016-0044-6).
 
[3] Disponível em https://www.psa-antwerp.be/en/terminals
 
[4] De Neufville, R. e Tsunokawa, K (1981): “Productivity and Returns to Scale of Container Ports”, Maritime Policy and Management, 8 (2).
 
[5] Sachish, A (1996): “Productivity Functions as a Managerial Tool in Israeli Ports”, Maritime Policy and Management, 23 (4).
 
[6] Apud Tovar, B., Jara-Diaz, S. & Trujillo, L. (2007). “Econometric estimation of scale and scope economies within the port sector: a review (07/04)”. London, UK: Department of Economics, City University London.
 
[7] Jara-Díaz, S. 1983. “Freight transportation multioutput analysis”. Transportation Research 17A, 6.
 
[8] Kim, M. e Sachish, A. (1986). “The structure of production, technical change and productivity in a Port. International Journal of Industrial Economics, 35.
 
[9] Atualmente possuem ativos em terminais portuários de contêiner em Santos as três maiores companhias de navegação (MSC, Maersk, CMA CGM), além do operador global Dubai Ports.
 
[10] https://www.atribuna.com.br/noticias/portomar/megaterminal-com-investimento-bilionario-pode-colocar-o-porto-de-santos-entre-os-maiores-do-mundo-1.454331
 

[11] Art. 20, caput e parágrafo único da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
 



*Cássio Lourenço Ribeiro é sócio da Lourenço Ribeiro Advogados. Pesquisador do Núcleo de Direito Setorial e Regulatório da Universidade de Brasília e especialista em Finanças Corporativas e Investment Banking pela Universidade de São Paulo.
 
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.
 

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