Artigos e Entrevistas

Exclusividade na contração de trabalhadores portuários: desdobramentos no TST e no STF

Fonte: ConJur / Matheus de Souza Depieri*
 
Há décadas vigora no setor portuário brasileiro discussão sobre a forma de contratação de trabalhadores portuários. Os aspectos históricos e práticos da Lei dos Portos (Lei nº 12.815/2013) trouxeram à tona, com alguma frequência, discussões sobre o alcance das normas que definem a exclusividade na contratação de trabalhadores vinculados ao Órgão Gestor de Mão-de-Obra (OGMO).
 
Para entender os debates, é importante explicar, de forma breve, as modalidades de contratação atualmente existentes no setor. Nos termos do artigo 40 da Lei dos Portos, o trabalho portuário pode ser desenvolvido por “trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado e por trabalhadores portuários avulsos”. O denominado “trabalhador avulso” presta serviços de forma independente (atendendo a várias empresas) e possui suas atividades coordenadas por um OGMO – que, nos termos do artigo 32 e seguintes da Lei dos Portos, possui a importante função de coordenar, administrar e qualificar a mão de obra avulsa nos “portos organizados” (definido no artigo 2º, inciso I, da Lei de Portos).
 
Assim, as empresas, quando necessitam de mão-de-obra avulsa, entram em contato com um OGMO, que disponibiliza oportunidades de trabalho para sua rede para que as vagas sejam voluntariamente preenchidas. Os “trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado”, por sua vez, possuem vínculo empregatício permanente e contínuo.
 
Muitos desses trabalhadores, no que interessa ao presente artigo, são regulados pelo artigo 40, § 2º, da Lei de Portos, que prevê que “a contratação de trabalhadores portuários de capatazia, bloco, estiva, conferência de carga, conserto de carga e vigilância de embarcações com vínculo empregatício por prazo indeterminado será feita exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados”.
 
As disposições sobre o trabalho portuário, desde a promulgação da Lei dos Portos (e muito antes, sob as normas anteriores), geraram intenso debate. Como será a seguir explorado, há discussões sobre a aplicação das normas de exclusividade fora dos “Portos Organizados” — especialmente em Terminais de Uso Privativo (TUPs), a legalidade da “exclusividade” acima mencionada nos casos de trabalhador com vínculo empregatício por tempo indeterminado, a conformidade da referida lei com tratados internacionais e, mais recentemente, a própria constitucionalidade de trechos da lei.
 
Sem ter a pretensão de exaurir o tema, este artigo buscará delinear brevemente alguns dos principais debates e decisões da justiça trabalhista, destacar importante caso pendente de apreciação do STF, e traçar breves paralelos de direito regulatório comparado, a fim de destacar perspectivas da União Europeia que podem ter utilidade para os debates existentes no Brasil.
 
Discussões no Tribunal Superior do Trabalho
 
A questão objeto deste artigo já foi submetida à Justiça Trabalhista diversas vezes. Ocorre que as decisões proferidas nem sempre foram coerentes e, em alguma medida, deixavam de seguir uma linha decisória uniforme. Para se restringir a debates mais recentes, serão destacados abaixo alguns casos paradigmáticos, que ilustram o problema.
 
Quando da vigência da Lei nº 8.630/1993 (antiga Lei dos Portos), o Tribunal Superior do Trabalho (TST), no Dissídio Coletivo nº 174611/2006-000-00-00, fez uso da “irrecusável aplicação da Convenção 137 da Organização Internacional do Trabalho OIT”, para decidir que, em vez de “exclusividade”, haveria uma “prioridade” na contratação de trabalhador por prazo indeterminado, e que tal disposição alcançaria “todos os portuários que se encontrarem ‘dentro do sistema’ (registrados e cadastrados no OGMO)”.
 
Com a entrada em vigor da Lei nº 12.815/2013, a questão foi novamente submetida à Justiça Trabalhista, por meio de dissídio coletivo (DC 1000360-97.2017.5.00.0000) ajuizado pela Federação Nacional das Operações Portuárias (Fenop). Após análise da controvérsia, o TST, em sessão de 20/9/2021, julgou parcialmente procedente o dissídio para declarar que o “OGMO detém exclusiva atribuição para gerir e intermediar o fornecimento de mão de obra de trabalhador avulso” e julgar parcialmente procedente a reconvenção para “declarar que as funções típicas portuárias, previstas no artigo 40 da Lei 12.815/13, devem ser exercidas por trabalhadores portuários registrados ou cadastrados no OGMO, tanto no regime jurídico de emprego ou no regime de trabalho avulso, seja dentro ou fora do porto organizado.
 
Após a oposição de diversos embargos de declaração por entidades do setor, iniciou-se uma nova discussão da controvérsia na Seção Especializada em Dissídios Coletivos. Apesar de a apreciação dos embargos de declaração ainda não ter sido concluída, o voto do exmo. relator, ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, concedeu importantes efeitos modificativos ao julgado, alterando de forma substancial o entendimento pretérito. No posicionamento do relator, foi reconhecido que:
 
(1) o OGMO detém competência para o gerenciamento e fornecimento de mão-de-obra de trabalhador portuário avulso, de forma exclusiva, para o operador portuário e para os TUPs, desde que o OGMO esteja presente no porto organizado na localidade, ou seja, na mesma região metropolitana ou próxima em que haja terminal portuário;
 
(2) estabeleceu como prioritária a exclusividade para a contratação de trabalhadores portuários avulsos sempre que o OGMO não tiver capacidade para atender à demanda numérica e/ou qualificação técnica necessária à execução do serviço portuário demandado; e
 
(3) o terminal portuário de uso privativo pode livremente contratar mão-de-obra portuária, com vínculo de emprego a prazo indeterminado, conforme previsão em contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva.
 
Apesar de este novo entendimento, se prevalecer, ser mais razoável do ponto de vista da regulação do setor, pode-se entender que o item (1) acima descrito encontra-se em dissonância com jurisprudência do próprio TST e do STJ. É comumente argumentado que as disposições de exclusividade na contratação não se aplicam às TUPs, que são “instalação portuária explorada mediante autorização e localizada fora da área do porto organizado” (Portos para Não Portuários, 2023), instaladas em áreas particulares e que possuem investimento e risco do negócio exclusivamente privados. Isso porque, conforme artigo 32 e 40 da Lei dos Portos, os OGMOs são constituídos pelos Operadores Portuários dentro da área do Porto Organizado, de forma que as exclusividades de contratação de mão-de-obra portuária avulsa seriam obrigatórias apenas dentro daqueles limites.
 
Considerando todas essas especificações legais, havia precedente do próprio TST no sentido de que “a atual Lei dos Portos, Lei nº 12.815/2013, continua garantindo aos titulares de portos privativos a mesma faculdade constante na lei anterior, que consiste na livre contratação de trabalhadores” e que “ao analisar as possibilidades de contratação de trabalhadores portuários, com vínculo empregatício por prazo indeterminado, ou por meio do trabalho avulso intermediado, tem-se que, com relação a estes últimos, o ordenamento jurídico consagra apenas a faculdade, e não obrigação, de contratação daqueles cadastrados no OGMO” (TST, 2ª Turma, AIRR-1401-36.2013.5.02.0442, relatora ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 19/12/2017).
 
Ademais, o STJ possui jurisprudência, firmada sob a égide da antiga Lei dos Portos, analisando a situação. Não se desconhece que “apenas em 2013, com a Nova Lei dos Portos, que a figura do terminal de uso privado – TUP, como temos hoje, foi criada” (Portos para Não Portuários, 2023), mas a ratio adotada no julgamento, certamente, ainda pode ser aplicada por analogia ao presente debate. Em decisão da 1ª Turma de 2007, o STJ decidiu que (1) “inexiste disposição expressa obrigando que empresa proprietária de píer privativo e privado seja obrigada a só fazer as operações de carga de descarga de navios em seu terminal, por meio de trabalhadores portuários avulsos cadastrados e registrados no OGMO”; (2) “para os portos privativos não há obrigações idênticas às impostas aos portos públicos”; e (3) “os terminais particulares são explorados sob regime jurídico de empresas privadas, pelo que são livremente administrados”, e “a iniciativa privada atua com liberdade” (REsp nº 593.624/RS, relator ministro José Delgado, 1ª Turma, julgado em 16/10/2007, DJ de 25/10/2007).
 
De forma breve, e sem entrar em muitos detalhes, percebe-se que os precedentes trabalhistas têm flutuado significativamente na interpretação da Lei dos Portos, de forma que, pelas mudanças de posicionamento, as decisões têm gerado insegurança no mercado portuário sobre os limites, extensões e aplicações das previsões legais.
 
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.591: o que vem pela frente?
 
Para buscar maior segurança jurídica sobre o tema, e almejando uma decisão vinculante em controle concentrado de constitucionalidade, a Associação Brasileira dos Terminais Portuários (ABTP), a Associação Brasileira dos Terminais de Contêineres (Abratec) e a Federação Nacional das Operações Portuárias (Fenop) ajuizaram a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.591 no Supremo Tribunal Federal. Na referida ação, os autores requerem a declaração de inconstitucionalidade do termo “exclusivamente” constante da redação do § 2º do artigo 40 da Lei nº 12.815/2013 (“a contratação de trabalhadores portuários […] com vínculo empregatício por prazo indeterminado será feita exclusivamente dentre trabalhadores portuários avulsos registrados”). Subsidiariamente, requereram a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto do referido artigo, para que o STF confira interpretação conforme ao termo “exclusivamente”, definindo seu significado como “prioritariamente”.
 
Nos termos da referida petição inicial, não seria constitucional a obrigatoriedade de contratação de funcionários portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado apenas entre os trabalhadores avulsos vinculados aos OGMOs. Isso porque, nos termos da ordem constitucional brasileira, monopólios e reserva de mercado devem ser exceção, especialmente considerando as normas relativas à liberdade de ofício ou profissão (artigo 5º, inciso XIII), à livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, e artigo 170), à livre concorrência (artigo 170, inciso IV), à liberdade econômica (artigo 170, parágrafo único), entre outros. Dessa forma, foi defendido que “a possibilidade de contratar trabalhador portuário não registrado no OGMO, para a formação de vínculo de emprego por período indeterminado”, seria essencial tanto para a manutenção da livre atividade econômica dos portos, quanto para a proteção das liberdades e garantias constitucionais dos empregados.
 
A controvérsia submetida ao STF é extremamente relevante e pode repercutir de forma significativa em todo o setor portuário, especialmente considerando que as decisões anteriores do TST não vinculam o STF — que pode confirmar, alterar ou refutar a forma então vigente de contratação de trabalhadores portuários. Após o ajuizamento da ação, diversas entidades representativas dos trabalhadores (especialmente sindicatos e federações) requereram ingresso no feito como amicus curiae e passaram a se movimentar e articular politicamente. Resta saber, nos próximos capítulos, as respostas que Portos e Associações vão adotar para se posicionarem sobre essa controvérsia.
 
Direito Comparado e perspectivas internacionais
 
Considerando que a matéria, agora, está pendente de julgamento em controle concentrado de constitucionalidade, é natural de se esperar que se dê especial atenção para experiências internacionais, considerando que, de acordo com Horbach, “o direito constitucional brasileiro tradicionalmente é permeável à contribuição do direito estrangeiro, por meio da importação de institutos e […] da abertura de sua jurisdição constitucional ao método comparado”. Nesse sentido, e tendo em vista que a discussão sobre mão-de-obra portuária certamente não é exclusividade do Brasil, tem-se como importante subsidiar o debate com perspectivas comparadas, que são muito diversas e podem fornecer informações cruciais para a jurisdição constitucional do STF.
 
Um possível exemplo de comparação regulatória é a União Europeia, que discute a organização do trabalho portuário há décadas. Entre avanços e retrocessos, o bloco ainda carece de uma regulamentação específica que seja aplicável a todos os países, mas, como destaca Verhoeven, são constantes os debates sobre o ponto de equilíbrio necessário entre a liberalização total e o monopólio total dos serviços portuários.
 
No cenário atual, superando um contexto setorial histórico que, até meados 1980, se pautava muito em questões de segurança social e sindicalização (Van Hooydonk, Volume I e Volume II), percebe-se, das últimas décadas, que “o trabalho portuário na Europa está passando por um lento processo de desregulamentação” (Bottalico), movido principalmente por movimento supranacionais. Tal desregulamentação, inclusive, pode ser vista a partir de documentos (não vinculantes) produzidos por órgãos da União Europeia, como o Communication on a European Ports Policy (2007). No referido documento, restou destacado que pools de funcionários na movimentação de carga podem ser relevantes e eficientes para qualificar a mão se obra, mas que “os referidos dispositivos não devem ser utilizados para impedir indivíduos ou empresas com a devida qualificação de prestarem serviços de movimentação de carga”, sob o risco de se infringir as regras do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, em particular, o artigo 43º, relativo à liberdade de estabelecimento, e o artigo 49º, relativo à liberdade de prestação de serviços.
 
Se no contexto supranacional da União Europeia ainda não há diretivas concretas e vinculantes, movimentos nacionais parecem confirmar a tendência de gradual desregulamentação. Como destacado pela European Sea Ports Organisation (ESPO), a maioria das reformas trabalhistas portuárias nacionais levaram a pequenas ou grandes mudanças nos arranjos da mão-de-obra especializada. Em um número crescente de portos, os trabalhadores portuários são empregados diretamente por operadores de terminais, em vez de contratados por meio de pools de entidades responsáveis pelo recrutamento e treinamento de trabalhadores portuários – e é normal que os empregadores possam contratar funcionários permanentes diretamente do mercado de trabalho externo, como ocorre, por exemplo, no porto de Genova (Bottalico, Vanelslander e Verhoeven, 2019).
 
Esse artigo, certamente, é muito curto para entrar em detalhes sobre perspectivas comparadas de regulamentação de trabalhadores portuários, mas a tendência, ao que parece, é que se tem priorizado cada vez mais as liberdades laborais nas experiências comparadas, especialmente na contratação permanente. Uma análise mais detalhada certamente poderá ser útil para o processo de tomada de decisão da Suprema Corte.
 
Conclusões e perspectivas
 
Por todo o exposto, este breve artigo teve o singelo objetivo de apresentar importantes discussões e controvérsias regulatórias do setor portuário, que estão no centro das atenções de agentes do setor em função dos recentes (e ainda incertos) desdobramentos ocorridos no TST e no STF. Apesar de ainda haver muito o que se discutir em sede de controle concentrado de constitucionalidade, e da necessidade de maiores subsídios de amicus curiae sobre experiências históricas e internacionais do setor, a ADI nº 7.591 tem o potencial de fornecer maior segurança jurídica sobre a extensão, a constitucionalidade e a aplicabilidade das normas da Lei de Portos que preveem exclusividades e reservas de mercado na contratação de trabalhadores.
 
*Matheus de Souza Depieri é advogado, mestre em Direito (LL.M.) pela Universidade de Cambridge - King’s College, associate editor da International Review of Constitutional Reform.
 

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