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A (in)segurança jurídica nos projetos concessionários de infraestrutura

Fonte: Jota / Natália Resende Andrade Ávila*
 
Por que as medidas recentes promovidas pelo CNJ e Ministério da Infraestrutura são relevantes?
 
(In)segurança jurídica certamente é uma das expressões mais faladas quando se trata de projetos concessionários de infraestrutura. E não apenas no Brasil.
 
Internacionalmente, as contratações de tais projetos podem receber a sigla DBFOM[1] ou mesmo PPP (lato sensu). No Direito brasileiro, observam-se os conceitos de concessão comum[2], administrativa, patrocinada[3], ou, para utilizar o termo mais abrangente positivado em 2016[4], contratos de parceria.
 
Fato é que os projetos concessionários de infraestrutura, independentemente da denominação ou de seu enquadramento, a depender do caso concreto, trazem consigo um caráter estratégico, complexo, específico, com vultosos investimentos, longo prazo, riscos e incertezas envolvidos[5].
 
As características mencionadas realçam, ainda mais, a importância do debate sobre segurança jurídica, muitas vezes lembrado pelo seu oposto: a insegurança. Alguns se questionam o que seria, realmente, a segurança jurídica e onde ela se encontra (ou se esconde). Classicamente, poderíamos pensar em uma espécie de conceito jurídico indeterminado. Praticamente, isso pode levar a uma referência circular entre conceito e resultado, na qual a indeterminação da segurança jurídica representaria justamente um cenário de insegurança jurídica.
 
Nesse contexto de divagações, medidas concretas, por mais simples ou óbvias que pareçam, mostram-se relevantes para tornar sólidos discursos teóricos ou mesmo aproximar conceitos da realidade.
 
Recentemente, uma série de iniciativas realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em conjunto com o Ministério da Infraestrutura chamou a atenção para discussões que têm, no cerne, a segurança jurídica como elemento propulsor. Primeiro, por meio de seminários promovidos para difundir e aproximar conhecimentos[6], que desaguaram na instituição de grupo de trabalho para “a elaboração de estudos e de propostas visando à melhoria da atuação do Poder Judiciário no ambiente de infraestrutura brasileira”[7]. Depois, com a criação de um comitê responsável pelo tratamento adequado de conflitos judiciais referentes a projetos qualificados no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI)[8]. Por fim, a partir de uma recomendação aos tribunais para adoção de cautelas visando a evitar o abuso do direito de demandar que possa comprometer os projetos de infraestrutura qualificados pelo PPI[9].
 
Cabem algumas observações sobre tais medidas e o que as circunda. Como mencionado no início, os projetos concessionários de infraestrutura carregam incompletudes e complexidades já a eles inerentes, que, por óbvio, são precificadas, ao lado dos altos investimentos também intrínsecos a esse tipo de contrato. Quanto mais variáveis a serem consideradas, sobretudo aquelas de difícil definição, provavelmente maior o valor a ser suportado, ao fim e ao cabo, pelo usuário do serviço. A valoração (ou tentativa de) da segurança jurídica se encontra nessa esfera e diz muito respeito à previsibilidade que uma boa modelagem contratual deve primar. Previsibilidade esta que parte da premissa de que não é viável prever a priori todas as circunstâncias que ocorrerão[10], mas reconhece a importância de encontrar saídas (ou portas[11]) para compor conflitos.
 
Composição é palavra-chave para colmatar as lacunas da dita incompletude contratual. A depender de cada caso, uma ou mais portas podem ser abertas para a conciliação de interesses e solução de divergências, que certamente aparecerão ao longo dos muitos anos de um contrato de parceria como o aqui tratado. A arbitragem é um bom exemplo, cuja prática vem se consolidando (e é importante que seja) no âmbito dos projetos concessionários de infraestrutura. A pergunta que se pode fazer é se mais mecanismos com esse intuito não poderiam ser desenvolvidos, considerando, por exemplo, demandas já judicializadas.
 
Foi a linha que caminhou o grupo de trabalho acima mencionado, ao propor o Comitê de Resolução de Disputas Judiciais de Infraestrutura (CRD-Infra), que nasce como uma possibilidade, uma nova porta, para o tratamento adequado de conflitos que se encontram judicializados, perpassando seu escopo por: (i) relacionar os casos possíveis de tratamento adequado e identificar os atores envolvidos; (ii) identificar os métodos adequados de resolução dos conflitos indicados; (iii) estabelecer comunicação e cooperação com os órgãos envolvidos em cada conflito, conferindo-se tratamento personalizado, de acordo com as especificidades; (iv) solicitar pareceres técnicos dos órgãos convidados pelo comitê para a tomada de decisão sobre as estratégias a serem adotadas; e (v) estabelecer um diálogo permanente com as autoridades judiciais com competência nos feitos apreciados pelo comitê.
 
Dois filtros foram trazidos para a atuação do CRD-Infra. O primeiro diz respeito ao “o que” poderá ser submetido: apenas projetos qualificados no PPI. O segundo trata do “como”: o projeto será indicado pelo presidente do CNJ, com anuência do ministro de Estado responsável pelo projeto, ou pelo referido ministro, com autorização do presidente do CNJ. Em todos os casos, deverá haver manifestação prévia da Advocacia-Geral da União (AGU). Como todo mecanismo novo, há de se analisar, à medida que os casos concretos avançarem, o funcionamento de suas engrenagens. Acredita-se, nesse sentido, que tais filtros poderão ser ampliados, seja na abrangência do objeto ou da iniciativa, se pertinente for, considerando-se aspectos, especialmente, de governança e efetividade da medida.
 
Utilizando, ainda, a alcunha porta, seu pretenso usuário às vezes não objetiva alcançar “o outro lado”, a mencionada composição. Nesse contexto, observa-se, em muitos casos, um excesso de judicialização, que enfraquece o ambiente de negócios de um país. Não se trata de não haver judicialização — esse é um direito, inclusive constitucional, que pode ser a saída encontrada para a solução de determinado problema. Trata-se, por exemplo, de urgências fabricadas, ações ajuizadas horas ou até minutos antes de leilões com o claro objetivo de comprometer um projeto cujo desenrolar não começou ontem. Pelo contrário, esses projetos têm e devem ter como premissa a observância de um robusto processo de governança, que precisa ser perquirido pela própria administração pública, órgãos de controle, judiciário, investidores, sociedade, sobretudo os presentes e/ou futuros usuários do ativo, enfim, por todos os atores impactados, direta ou indiretamente, pela parceria.
 
O abuso do direito de demandar mencionado na Recomendação n° 129, de 15 de junho de 2022, expedida pelo CNJ, vai ao encontro desse tipo de situação. Nos seus dizeres, “entende-se por abuso do direito de demandar o ajuizamento de ações com aparente caráter de urgência infundada, em expediente normal ou plantão judiciário, com o intento de questionar projetos, leilões ou contratos de infraestrutura que se encontram em fases de desenvolvimento”.
 
Ainda, de acordo com o aludido texto do CNJ, com o objetivo de garantir segurança jurídica e de evitar os efeitos danosos do abuso do direito de demandar nos projetos de infraestrutura qualificados pelo PPI, as seguintes cautelas são recomendadas aos magistrados, antes de decidir qualquer tutela de urgência: (i) verificar se o projeto observa o procedimento de governança, conforme protocolo anexo à recomendação; (ii) ouvir os órgãos da administração pública responsáveis pelo projeto; e (iii) consultar o protocolo que a acompanha para subsidiar suas decisões. Tais cautelas, nessa esteira, não se esquecendo da garantia ao essencial acesso à Justiça, observam a prudência que deve existir na preservação de outros direitos também fundamentais consubstanciados no âmbito dos referidos projetos.
 
Não se pretende aqui explorar aspectos da norma processual civil ou entendimentos doutrinários sobre o tema concernente ao abuso do direito de demandar. Objetiva-se, sim, enxergar a importância da segurança jurídica nos projetos concessionários de infraestrutura e o que ela significa. Mais, o que seria a segurança jurídica quando se fala de contratos de parceria.
 
O protocolo que acompanha a recomendação supracitada elenca três pilares relevantes para o adequado desenvolvimento dos projetos em tela, trazendo contornos para o conceito de segurança jurídica, a saber: (i) a estabilidade do ambiente de negócios, com marcos legais, regulatórios e contratuais bem delineados; (ii) a previsibilidade do planejamento estabelecido; e (iii) o consequencialismo das decisões.
 
Sobre o primeiro, vale o destaque feito de que um ambiente de negócios estável é fundamental para o desenvolvimento do programa de concessões de um país, bem como a solidez dos marcos legais, regulatórios e contratuais. Na esfera da previsibilidade, o protocolo ressalta que esta, juntamente à estabilidade das relações econômicas, gera expectativas confiáveis em relação ao futuro no âmbito dos contratos de concessão, haja vista que o investidor, ao estudar um portfólio, avalia a força das instituições e a capacidade de execução pelo Estado daquilo que foi objeto de planejamento e divulgação para atração de parcerias com a iniciativa privada.
 
Por fim, quanto ao terceiro pilar, remete-se ao não menos importante art. 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cuja redação merece sempre ser rememorada: “[a] decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas”.
 
Tais pilares alcançam (e devem atingir) muito além dos projetos concessionários de infraestrutura e daqueles qualificados no PPI. Assim também se almeja em relação ao texto da recomendação, mais restrito em virtude do escopo do grupo de trabalho que o gerou, porém com uma densidade valorativa que transcende seu objeto. De novo, alguns pontos podem parecer simples, quiçá óbvios. Mas, muitas vezes, as medidas simples são as mais eficientes e as obviedades precisam ser recordadas. Talvez aí também esteja a segurança jurídica, versão clara e determinada, a necessária para projetos como os aqui versados.


 
[1] Projeto-Construção-Financiamento-Operação-Manutenção. Ver, nesse sentido: Certified PPP professional (CP3P): guide. High Wycombe: APMG International, 2016. Disponível em: <https://ppp-certification.com/pppguide/brazilian-portuguese>. Acesso em: 29 jun. 2022.
 
[2] Regida pela Lei n° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
 
[3] Ambas, administrativa e patrocinada, conforme a Lei n° 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
 
[4] De acordo com a Lei n° 13.334, de 13 de setembro de 2016.
 
[5] Conceito constante do art. 1°, § 2º, da Lei n° 13.334, de 13 de setembro de 2016.
 
[6] Disponível em: <https://www.youtube.com/user/cnj/videos>. Acesso em: 29 jun. 2022.
 
[7] Com representantes do CNJ, MInfra, AGU, SPPI, ANAC, ANTT, Antaq, DNIT e OAB, o referido grupo possui dois objetivos centrais, no ambiente de infraestrutura brasileira: (i) desenvolver ações que ampliem e garantam o debate intersetorial para prevenção e tratamento adequado de litígios; e (ii) realizar estudos e sugerir a utilização de métodos para conferir celeridade e eficiência na solução de conflitos. Ver, nesse sentido: Portaria CNJ n° 7, de 14 de janeiro de 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/conjur/PortariaGT.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2022.
 
[8] Conforme Portaria CNJ n° 142, de 29 de abril de 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/conjur/Portarian.142_2022.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2022.
 
[9] Recomendação CNJ n° 129, de 15 de junho de 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/conjur/original1332482022062362b46b80afe37.pdf> . Acesso em: 29 jun. 2022.
 
[10] Como explana Gómez-Ibáñez (2003), uma limitação central dos contratos de longo prazo é a sua incompletude ou a possibilidade de que o instrumento se torne obsoleto caso as circunstâncias se alterem. Por óbvio, quanto mais longo o contrato, mais circunstâncias tendem a mudar ao longo da vida contratual. A tentativa de identificar todos os fatos relevantes que poderão ocorrer no âmbito de tais contratos impacta nos custos, no tempo de planejamento, e é, no limite, impraticável, uma vez que as necessidades de cada parte em uma relação de prazo extenso são incertas e complexas (“Regulating infrastructure: monopoly, contracts, and discretion”. Cambridge: Harvard University Press, 2003).
 
[11] Ver, nesse sentido: SANDER, Frank. “The Multi-Door Courthouse: Settling Disputes in the Year 2000”. HeinOnline: 3 Barrister 18, 1976; e SALES, Lilia; SOUSA, Mariana. “O Sistema de Múltiplas Portas e o judiciário brasileiro”. Direitos Fundamentais & Justiça – ano 5, n° 16, p. 204-220, jul./set. 2011.


 
*Natália Resende Andrade Ávila - Procuradora Federal. Consultora Jurídica no Ministério da Infraestrutura. Doutoranda e mestre no PTARH/UnB, com foco em regulação de infraestruturas de rede. Professora em Parcerias Público-Privadas (FESPSP, Mackenzie, IPOG e outros)
 

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