Artigos e Entrevistas

Uma ponte para o túnel do tempo

Fonte: O Estado de S. Paulo / Eduardo Abrunhosa*
 
Em 6 de abril deste ano, a Santos Port Authority lançou um edital convidando interessados a uma, doação de Projetos, para a construção da ligação seca entre as cidades de Santos e Guarujá. Desde então, o debate reencontrou as páginas dos jornais e as conversas de bares, agitou o mercado financeiro e a administração de ambas as cidades, a boa e velha conversa sobre uma ligação seca, que reduza os cerca de 30 km, hoje existentes, pela Rod. Conego Domenico Rangoni ou a quase sempre lenta e confusa travessia por balsa, ganha força. Em 31 de maio a Comissão de Viação e Transporte da Câmara Federal promoveu uma audiência pública que estendeu a discussão para data futura uma vez que a dúvida estava posta: O que deve ser construído, uma ponte ou um túnel?
 
A cidade do Guarujá está localizada na Ilha de Santo Amaro, separada do continente pelo Canal de Bertioga e da Ilha de São Vicente, onde está localizada a cidade de Santos, pelo Estuário de Santos. A Câmara de Vereadores do Guarujá já emitiu sua opinião por meio da moção 48/21, apontando o túnel com 1,7 km como sua opção, em contraposição ao projeto da ponte com aproximadamente 7,5 km. Mas esse artigo não se propõe a apontar vantagens e desvantagens das opções, na verdade a intenção é usar esse debate como uma “PONTE” para nos levar a um “TÚNEL” do tempo, onde poderemos perceber que ainda que esse projeto (seja ele qual for) seja “doado”, uma quantia incalculável de recursos públicos, já foi gasta com essa questão em específico.
 
Em 1927 o governo estadual empreendeu esforços analisando a viabilidade da escavação de um túnel para ligar as duas cidades por meio de bondes elétricos; em 1948 estudou-se uma ponte elevadiça como alternativa; 1970 a possibilidade de uma ponte com acesso helicoidal esteve na pauta, isso entre tantos estudos, projetos, análises, consultorias, todas pagas com recurso público.
 
Esta semana enquanto o debate aparecia novamente nos noticiários, a equipe técnica do Centro Histórico Cultural Mackenzie – CHCM, trabalhava na preservação do acervo do Eng. Mackenzista Roberto Zuccolo, considerado por muitos um dos maiores calculistas da engenharia brasileira e que atuou ativamente em diversas obras de infraestrutura em todo território nacional em especial no Estado de São Paulo, entre as quais, Rodovia dos Imigrantes, Rodovia SP55, Ponte do Socorro, Ponte da Av. João Dias, que tendo  falecido em 1967, teve seu escritório mantido plenamente por seus sócios, ex-alunos e outros engenheiros (quase todos igualmente mackenzistas), pois bem, as técnicas se viram diante de um projeto, justamente para ligação seca entre as duas cidades. Uma ponte, com aproximadamente 2.700 metros, projetada em 1979, pelo Eng. Jan Arpad Mihalik, formado pela Escola de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie no ano de 1950 e Presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo (1973/1974), falecido em 2017.
 
Com riqueza de detalhes em sua análise sobre o movimento portuário de então, estudo de solo e de soluções, apresenta 3 opções de implantação, o projeto pago pelo poder público como tantos outros acabou em uma das 1700 caixas que integram o Fundo Roberto Zuccolo e hoje está sob a guarda do CHCM. Ao ser avisado pelas técnicas sobre o achado, logo me veio à memória a incapacidade que temos, na administração pública brasileira, para antes de nos lançarmos simplesmente a mais um emocionante debate sobre determinado tema, visitarmos as experiências anteriores, os projetos já pensados, reavaliá-los sob a perspectiva de que sempre há um caminho que já pode ter sido trilhado por alguém antes.
 
Como historiador, coordenador do CHCM, me sinto na obrigação não apenas de, junto com minha equipe, preservar esse tipo de informação para posteridade, mas sobretudo, poder diante de uma discussão como essa trazer a contribuição memorial positiva para o debate. Em 2027, ou seja, daqui a 6 anos, estarão completos 100 anos que esse debate sobre a ligação seca entre Santos e Guarujá se iniciou, muito já foi pensado, estudado, avaliado, várias opiniões emitidas, e diante desse longo percurso o interesse político (ou não) sempre se impôs, a única coisa que não pode ser afirmada e por favor não queiram nos fazer acreditar, que não se gastou ou gastará mais nenhum recurso público com o projeto, simplesmente porque as empresas foram chamadas a “doarem projetos”.  A infinidade de projetos que podem ser encontrados nos ricos e extensos acervos de instituições como Instituto de Arquitetos do Brasil, CREA, Universidades, Empresas Públicas, Arquivos Públicos, com certeza dariam conta de uma significativa parcela das questões tão exaustivamente debatidas sobre infraestrutura no país, tal como essa aqui abordada.
 
O recurso público não pode ser tratado como algo que caia no mar do esquecimento, a síndrome da folha em branco e do planejamento por ativismo, não podem nos levar a desistir de investigar os arquivos, acervos e centros de documentação sob pena de produzir mais material sobre as questões já analisadas, além é claro, do mau trato com a coisa pública que isso representa, com a falta de diligência e compromisso. Se a questão é não gastar dinheiro com o projeto, o CHCM sendo um Centro vinculado a uma Instituição comunitária e filantrópica, coloca a disposição do Estado de São Paulo, para ser revisto, ajustado no que couber, atualizado no que for necessário, o projeto que temos em nosso acervo, pronto a contribuir com os técnicos do governo do Estado de São Paulo, com a Comissão de Viação e Transporte da Câmara dos Deputados, quem sabe assim, realmente algum recurso público já empregado, tenha real valor.
 
Assim aprendendo com a história, voltamos por esse TÚNEL DO TEMPO revisitando os acontecimentos em busca de uma PONTE, com o compromisso e o espírito público verdadeiro, por meio da valorização da nossa história, dos profissionais envolvidos e da preservação da memória.
 
*Eduardo Abrunhosa é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Historiador e mestre em Arquitetura e Urbanismo, doutorando em História pela Universidade de Salamanca e em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com pesquisas voltadas para a História das Cidades e suas relações com a Educação. Possui mais de 30 anos de experiência na docência, com passagens em diversos cargos públicos.
 

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