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O transporte marítimo e o comex pós-Covid – Um novo normal?

Fonte: ABOL / Robert Grantham*
 
Quando há quase um ano começaram os primeiros sinais de que marchávamos para uma pandemia, havia uma sensação generalizada de que seria algo passageiro, que em pouco tempo iria embora e a vida voltaria ao seu ritmo anterior. Os meses foram passando e se foi percebendo que se tratava de algo muito maior tanto em relação às suas inimagináveis consequências quanto nas mudanças de hábitos que gerou ou catalisou.
 
O comércio exterior e o transporte marítimo felizmente não pararam totalmente, se ajustaram e foram capazes de manter as pessoas e os países abastecidos de alimentos e outros bens essenciais. Embora ainda seja difícil cravar como será o “novo normal”, já começa a ficar claro que o setor está passando por mudanças estruturais importantes que ditarão o rumo do futuro e quase nada mais será como antes.
 
Há alguns dias a UNCTAD, lançou o seu já tradicional e respeitado ‘Maritime Review” 2020, que logo na introdução diz: “A pandemia do coronavírus (Covid-19) ressaltou a interdependência global das nações e colocou em movimento novas tendências que remodelarão o panorama do transporte marítimo. O setor está em um momento crucial, enfrentando não apenas preocupações imediatas resultantes da pandemia, mas também considerações de longo prazo, que vão desde mudanças no design da cadeia de suprimentos e padrões de globalização a mudanças nos hábitos de consumo e gastos da população, passando por um foco crescente na sua avaliação de risco e resiliência, bem como sua sustentabilidade global reforçada e pela agenda de baixo carbono. O setor lida ainda com os efeitos colaterais do crescente protecionismo comercial e políticas voltadas para o interior”.
 
Examinamos essas tendências que confirmam muito do que viemos afirmando ao longo de todo o ano de 2020.
 
A despeito da pandemia, permanece (e se intensifica) a pressão para que o transporte marítimo se torne cada vez mais sustentável. A descarbonização dos motores marítimos será cada vez mais perseguida e o controle da poluição ambiental será fortemente cobrada dos armadores, o que traz um problema para o desenvolvimento dos novos projetos de navios, já que um navio tem uma vida útil entre 25 e 30 anos. 
 
Dessa forma, o navio que é encomendado ao estaleiro hoje deve estar adequado para responder às exigências ambientais ao longo do próximo quarto de século. A Organização Marítima Internacional e a ONU têm como meta reduzir as emissões de gases de efeito estufa do transporte marítimo em pelo menos 50% até 2050 e reduzir a intensidade de carbono das emissões em 40% até 2030 e 70% até 2050, em comparação com os níveis de 2008. A urgência é clara, mas o custo para se conseguir isso será substancial.
 
A pandemia também deixará dentre seus legados uma consciência da necessidade de melhor gerir riscos e construir uma resiliência maior, capaz de resistir a eventos inesperados, que culminará em novos padrões para as cadeias de suprimentos. Outro fato que levará as cadeias de suprimentos a novos padrões será uma esperada revisão na tão decantada globalização de décadas. 
 
Juntos esses dois fatores devem promover tanto uma diversificação de fontes fornecedoras e, provavelmente, o abandono dos princípios radicais do “just in time”, trocado por maiores estoques, que garantam o fornecimento de componentes e matérias primas em momentos de ruptura das cadeias, quanto uma redistribuição dos fluxos internacionais de carga, com o surgimento de novas rotas em detrimento de rotas tradicionais.
 
Poderão ser observadas ainda mudanças de comportamento dos consumidores, que passarão a prestigiar mais a indústria local e promover o “near shoring”, que trata de trazer a produção novamente para perto de casa. Já se reflete esse comportamento na recém lançada política do presidente Biden, incentivando o “Buy American”. No Brasil, de forma tímida, também se percebem movimentos no sentido de prestigiar o produtor local. Isso, no longo prazo, pode trazer implicações para o transporte marítimo de longa distância.
 
A digitalização das cadeias logísticas e do transporte marítimo, que já vinha se fazendo notar, ganhou ritmo acelerado a partir da pandemia, com a integração de sistemas, uso de inteligência artificial, “Port Community Systems”, plataformas integradas para reserva de espaço, “e-documments”, etc. Uma importante iniciativa foi a criação da DCSA (Digital Conteiner Shipping Association) formada pelos principais armadores de contêineres cujo objetivo é criar padrões comuns de tecnologia da informação para tornar o setor mais eficiente tanto para os clientes quanto para as linhas de transporte.
 
Junto com a digitalização surge uma preocupação muito grande com segurança, ou “cyber security”. O setor experimentou ataques devastadores a alguns players, que paralisaram suas atividades e trouxeram prejuízos enormes. Destacam-se o ataque à APM-Maersk em 2017, à COSCO em 2018 e, recentemente, à MSC e à CMA CGM em 2020.
 
Contudo, certamente a lição mais importante, tangível e (possivelmente) duradoura da pandemia tenha sido a capacidade dos armadores em ajustar suas ofertas de capacidade à demanda logo no início da crise, quando a China entrou em lockdown e o país praticamente parou. Os armadores prontamente retiraram capacidade do mercado, por meio dos “blank sailings”, conseguindo não só sustentar os fretes, como reportar lucros enquanto muitos setores mundo afora sucumbiam. Quando a demanda mundial por produtos chineses subitamente reagiu no 3º trimestre de 2020, surpreendendo a todos, os armadores até foram rápidos em disponibilizar “extraloaders”, muito embora o desequilíbrio nos estoques globais de contêineres tenha gerado gargalos que levaram alguns fretes a patamares jamais previstos (como a Importação da China para o Brasil: cujo frete chegou a atingir US$ 10.000 por um contêiner).
 
O que se viu foi um aquecimento sem precedentes da demanda, resultante dos estímulos econômicos dos governos e, sobretudo, da mudança dos hábitos de consumo sendo desviados dos serviços para o e-commerce. Atualmente praticamente toda a tonelagem disponível está empregada, entretanto ainda faltam contêineres e os fretes permanecem em patamares muito acima dos observados no mesmo período do ano passado (com o agravante que o nível de serviço e a integridade de schedule também registram, por outro lado, suas piores marcas).
 
Esse quadro é bastante diferente da crise de 2008/2009 quando, na ânsia de ganhar “market share”, os armadores fizeram enormes encomendas aos estaleiros que levaram a excesso de capacidade, derretimento dos fretes, prejuízos e, por fim, falências, aquisições e fusões. Daqui para frente, e por algum tempo, é de se esperar que o jogo permaneça nas mãos dos armadores, que em número menor e operando em poucas alianças terão plenas condições de continuar ajustando a oferta à demanda, evidentemente que sob um olhar a cada dia mais atento das autoridades de defesa da concorrência e de representantes da indústria, com intuito de coibir abusos, corrigir distorções e assegurar que práticas anticoncorrenciais não ocorram.
 
Outra forte tendência que também deve se acentuar é a verticalização de muitos armadores e terminais, que têm demonstrado maior interesse no potencial de oportunidades de negócios que possam existir ao longo de toda a cadeia logística, avançando sobre a logística terrestre. O objetivo é estar mais perto dos clientes e poder oferecer uma logística de ponta a ponta confiável. Esse movimento traz embutido uma entrada dos armadores no setor dos “freight forwarding” que provoca uma grande discussão quanto à sobrevivência dos tradicionais agentes de carga. Alguns desses agentes nos têm dito que os operadores pequenos e médios deverão manter seu espaço, pelo conhecimento das peculiaridades locais dos mercados.
 
Concluindo, parafraseio o Professor Leon C. Megginson, autor do livro “Small Business Management": “Não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”.
 
*Robert Grantham, sócio da Solve Shipping Intelligence
 

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