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A impossibilidade de escolher uma única definição da escravidão

Fonte: ConJur / Ruy Fernando G. L. Cavalheiro*
 
Dentre os tipos previstos no art. 149 do Código Penal não se identifica a restrição de liberdade como sendo uma condição para a caracterização de todas as figuras do trabalho em condições análogas às de escravo.
 
Pelo contrário: o “caput” do art. 149 é de clareza solar ao listar as distintas e independentes entre si situações que tipificam o trabalho escravo, separadas pelas expressões “quer” e “ou”, que têm como função narrativa a de introduzir uma modalidade distinta da espécie que é o trabalho escravo - “quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
 
O § 1º do mesmo artigo ainda traz mais três espécies de trabalho análogo, que são as de restrição ao uso de transportes, manutenção de vigilância ostensiva e retenção de documentos ou objetos, vinculadas à restrição de locomoção. O simples fato da norma especificar tais condutas como criminosas não evidencia que nas demais a restrição à liberdade de locomoção seja exigida. Evidencia, apenas, que estas são espécies de condutas que caracterizam o delito de trabalho em condições análogas às de escravo, tal como as demais condutas da norma.
 
O conceito de escravidão que a equipara exclusivamente à restrição de locomoção é incompleto e equivocado. A estudo da História nos mostra que a escravidão é um fenômeno relacional e dinâmico. Como adverte Guarinello,
 
“(…) ao contrário do mundo moderno, a escravidão antiga sempre conviveu com outras formas de dominação de pessoas e de exploração de trabalho dependente. No mundo antigo havia todo um espectro de situações de dependência entre a escravidão e a liberdade. A escravidão representava apenas uma das pontas desse espectro”.[1]
 
A escravidão em si não é apta a identificar todas as modalidades de desconsideração do ser humano adotadas pela Humanidade ao longo de sua trajetória. O mesmo autor cita, mais adiante, que não se pode pressupor que haja uma identidade que caracterize todas as espécies de escravidão, “mas apenas analogia entre as várias formas de ‘escravidão’ que podemos enumerar ou propor,” apontando para as distintas figuras dos índios Tupi, dos judeus e dos africanos da era moderna.[2]
 
Pode se afirmar em apertada síntese que escravo é quem é menos livre, menos digno e menos detentor de direitos conforme os conceitos de liberdade, dignidade e de direitos de cada época e local da existência humana.
 
Na Babilônia os escravos viviam em comunidades próprias, como os judeus capturados por Nabucodonosor, sem estarem necessariamente presos, acorrentados ou vigiados, conforme narra Venâncio.[3] E conforme Williams, os escravos dos vikings nórdicos vagavam livremente pelas suas aldeias, podendo inclusive negociar nos mercados públicos em seu próprio interesse e retendo os lucros de seus negócios.[4]
 
No Brasil a economia colonial e imperial se deu sob o sistema escravocrata, o que significa que a maior parte do trabalho era prestado por escravos. E o trabalho se desenvolvia nos campos mas também nas cidades, em suas oficinas, comércios e residências, que contavam com escravos que não eram presos e acorrentados mas se deslocavam pelas ruas em benefício e a mando de seus proprietários.
 
Genestra[5] analisa os escravos de ganho na Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, que eram escravos urbanos que trabalhavam para seus donos exercendo atividades econômicas, muitos em labor externo:
 
Eles faziam serviços simples, como ir às compras, transportar lixo, eram moleques de recado, acompanhavam senhoras aos lugares aos quais se destinavam, vendiam diversos objetos e produtos alimentícios pelas ruas da cidade.
 
Alguns desses escravos de ganho podiam, inclusive, obter para si parte da renda do trabalho prestado para seus donos além de usar parte do tempo para atividades em proveito próprio. Daí a previsão da alforria pela compra da liberdade do escravo, algo que apesar de ser raro de ocorrer, era previsto em lei e possível em tese.
 
Já Silva[6] trata das festas de escravos e libertos na Ilha de Santa Catarina, que ocorreram do século XVII até aproximadamente 1840, e reuniam escravos africanos que se congregavam com libertos e festejavam em procissões e festas cristãs mas com diversos elementos religiosos de matiz africana. Os escravos se moviam livremente pela cidade durante os festejos, sem grandes restrições à sua locomoção.
 
A ideia de escravidão atrelada exclusivamente à restrição da liberdade de locomoção, portanto, não faz sentido nem na História da humanidade e nem na do Brasil.
 
Na Bíblia, inclusive, considerada ou como fundamento da fé ou como uma das fontes da cultura ocidental, é constatado que a escravidão também não implicava na restrição à liberdade de locomoção . Nem dos judeus escravizados muito menos dos escravos dos judeus. Quando os hebreus foram aprisionados no Egito, mesmo sendo escravos andavam livremente pelas cidades em que moravam. No Êxodo 12.4 é claramente mencionado que os judeus no cativeiro tinham casas e vizinhos, o que evidencia que dispunham de habitações próprias e, consequentemente, não tinham uma completa restrição à liberdade de locomoção.
 
Em outras passagens, como no Deuteronômio e no Êxodo constam diversas regras para os escravos, especialmente a de folgas aos finais de semana, tal como as dos homens livres. E quando do início da Igreja Católica, após a morte de Jesus, dentre os ouvintes dos pregadores do cristianismo primitivo constavam muitos escravos, como diversas passagens dos evangelhos e das cartas dos apóstolos mencionam. Como eles poderiam ter ido às pregações se tivessem a liberdade de ir e vir totalmente restringida?
 
Não se entenda que essas modalidades de escravidão eram muito melhores que as demais. Não eram. Mesmo sem sofrerem uma restrição absoluta ao seu direito de ir e vir, todos esses escravos sofriam uma efetiva diminuição dele, pois não podiam simplesmente ir embora e se desconectar do trabalho e da escravidão. Ademais, não eram considerados como sendo pessoas no sentido pleno da palavra em nenhum desses contextos sociais, geográficos e históricos. Eram vistos como coisas que podiam ser vendidas, alugadas, herdadas e que podiam, também, ser castigadas, mutiladas e até assassinadas sem que nenhum desses atos fosse considerado desumano. Por este motivo foi dito que a ideia de escravidão é relacional, pois escravo é quem é menos pessoa do que as pessoas não-escravas daquela sociedade.
 
A ideia vulgar de escravidão, ligada exclusivamente à restrição da liberdade de locomoção, denota uma escolha pessoal de quem a defende. Uma escolha de ignorar a lei, que não menciona tal restrição como essencial dos outros tipos da redução à condição análoga à de escravo. E uma escolha de ignorar, também, o que a História mundial, a do Brasil e a própria Bíblia dizem sobre as diversas formas de escravidão registradas.
 
Escolher uma única figura de escravidão como sendo a conceitual tem como efeito cristalizar temporal e conceitualmente a própria escravidão, negando sua indissociável dinâmica com as sociedades humanas e seus momentos culturais, políticos e históricos. Essa opção interpretativa nega que práticas que o Código Penal prevê como tipificadoras da conduta do art. 149 do Código Penal, tais como a fraude, o endividamento e as condições degradantes, sejam consideradas como trabalho em condições análogas às de escravo quando inexista alguma restrição à liberdade de locomoção dos trabalhadores. Torna, assim, letra morta a lei e considera inexistente a escravidão sem a restrição à locomoção.


 
[1]GUARINELLO, Norberto L. Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no Mundo Romano. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 52. P. 229.
 
[2]Id, p. 229-230.
 
[3]VENÂNCIO, Mariana A,; VIEIRA, Geraldo D. O alvorecer de uma nova esperança:a ascensão do Império Persa e a libertação de Israel. Rhema, v. 15, n. 48/49/50, jan./dez. 2011 – Edição Unificada p. 139.
 
[4]WILLIAMS, Kirstina D. Of Thralls and Freemen: Norse social structure during the Viking Age. In ResearchGate, disponível em <https://www.researchgate.net/publication/281490236_Of_Thralls_
and_Freemen_Norse_social_structure_during_the_Viking_Age
>, acesso em 15.11.2019.
 
[5]GENESTRA, Cinthia Bourget Fortes. A atuação dos escravos de ganho na organização da cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. Para entender a história, Ano 2, Volume jan., Série 11/01, 2011, p.01-11. Disponível em <http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/01/atuacao-dos-escravos-de-ganho-na.html>, acesso em 16.11.2019.
 
[6]SILVA, Jaime J. dos S. Entre a diversão e as proibições: as festas de escravos e libertos na Ilha de Santa Catarina. in História Diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. UFSC: Florianópolis, 2013. Passim.


 
REFERÊNCIAS
 
GUARINELLO, Norberto L. Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no Mundo Romano. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 52. P. 227-246.
 
GENESTRA, Cinthia Bourget Fortes. A atuação dos escravos de ganho na organização da cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. Para entender a história, Ano 2, Volume jan., Série 11/01, 2011, p.01-11. Disponível em <http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/01/
atuacao-dos-escravos-de-ganho-na.html
>, acesso em 16.11.219.
 
SILVA, Jaime J. dos S. Entre a diversão e as proibições: as festas de escravos e libertos na Ilha de Santa Catarina. in História Diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. UFSC: Florianópolis, 2013.
 
VENÂNCIO, Mariana A,; VIEIRA, Geraldo D. O alvorecer de uma nova esperança: a ascensão do Império Persa e a libertação de Israel. Rhema, v. 15, n. 48/49/50, p. 135-148, jan./dez. 2011 – Edição Unificada.
 
WILLIAMS, Kirstina D. Of Thralls and Freemen: Norse social structure during the Viking Age. In ResearchGate, disponível em <https://www.researchgate.net/publication/281490236_Of_
Thralls_and_Freemen_Norse_social_structure_during_the_Viking_Age
>, acesso em 15.11.2019.


 
*Ruy Fernando G. L. Cavalheiro é procurador do Trabalho, mestre em Direito, especialista em Filosofia do Direito e em História e Filosofia da Ciência, além de associado do Movimento do Ministério Público Democrático.
 

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