Artigos e Entrevistas

A perversão normalizada: assédio moral no ambiente de trabalho

Fonte: Carta Capital / Valdete Souto Severo
 
Em ensaio para a CartaCapital, Juíza do Trabalho Valdete Severo aprofunda em diversas questões sobre o assédio moral nas empresas
 
 
O fato de que o assédio moral é alvo de livros e teorias, que buscam enquadrar esse fenômeno dentro de características e requisitos que nem sempre correspondem à realidade de sofrimento e de adoecimento que o representam, é muito significativo. Fala-se, inclusive, em indústria do dano moral, acusando trabalhadoras e trabalhadores de pedirem, na Justiça do Trabalho, indenizações por circunstâncias que nem deveriam ser trazidas ao Poder Judiciário.
 
A justificativa para a introdução de um artigo 223G na CLT, fixando a indenização por dano moral em até cinco vezes o último salário contratual do ofendido, se a ofensa for de natureza leve; até dez vezes o último salário contratual do ofendido, se de natureza média e até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido, se de natureza grave, é exatamente essa necessidade de conter uma suposta “indústria” do dano moral.
 
A tarifação, abandonada há muito pela doutrina e pelo direito comum, desconsidera o fato de que cada dano é único. Pior: nivela trabalhadores e trabalhadoras pela remuneração que auferem, de tal modo que no caso de um dano por assédio estrutural, que atinja vários colegas no mesmo ambiente de trabalho, implicará – caso essa lei manifestamente inconstitucional seja aplicada – condenação em valores diversos, a depender do salário de quem foi atingido.
 
Enquanto isso, um projeto de lei de 2001, PL 4742, propõe a criação de um tipo penal no artigo 146-A do CP: “Desqualificar reiteradamente, por meio de palavras, gestos ou atitudes, a auto-estima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico funcional ou laboral. Pena: Detenção de (3 (três) meses a um ano e multa”.
 
Essa movimentação legislativa impõe que nossa reflexão acerca do fenômeno do assédio no ambiente de trabalho seja mais profunda. Não se trata de perquirir se estão presentes os requisitos que algum autor mais preocupado em “cientifizar” o tema tenha escolhido como essenciais. Trata-se, isso sim, de compreender as origens e as consequências pessoais e sociais não apenas desse fenômeno, como do tratamento que ele vem recebendo do Poder Judiciário.
 
O assédio no ambiente de trabalho tem raízes que dizem com a própria forma como a troca entre capital e trabalho se opera.
 
Quando, historicamente, admitimos que o trabalhador fosse despojado da terra que possuía e se visse lançado no “mercado de trabalho”, tendo como única mercadoria para oferecer em troca de salário que lhe desse mínimas condições de sobrevivência, seu próprio corpo (sua força de trabalho), a opção que fizemos – como sociedade –foi a de viabilizar, permitir e incentivar a exploração de pessoas como se fossem coisas. Essa me parece uma premissa fundamental na compreensão do que hoje classificamos como assédio no ambiente de trabalho.
 
A forma capital estimula a utilização de “força de trabalho”, que nada mais é do que um eufemismo para falar da possibilidade de exploração do próprio trabalhador, em troca de dinheiro. E faz desse dinheiro condição de possibilidade de sobrevivência. Desse modo, é fácil compreender: quem precisa do trabalho deve colocar-se à disposição de quem detém o capital para empregá-lo, para tomar seu trabalho.
 
É comum ver, nos manuais de gestão, referências à capital humano, ao trabalho como um dos fatores de produção. Há aqui, portanto, um dado objetivo: o sistema capitalista se alimenta da utilização de pessoas como se mercadorias fossem, o que se materializa através a compra e venda de força de trabalho. Sabemos que desde o Século XVIII até agora avançamos em uma retórica que valorize o trabalhador em sua condição humana, reconhecendo-lhe direitos que inclusive são definidos como fundamentais na Constituição de 1988.
 
A prova, porém, de que essa “coisificação” de quem trabalha independe de maior ou menor proteção jurídica a quem trabalha; de boa vontade das partes envolvidas na relação de trabalho ou das alterações produzidas pela tecnologia e pelo amadurecimento da civilização está no fato de que o capitalismo altera sua forma de reprodução, mas mantém – e agudiza – os elementos objetivos que promovem o adoecimento e o sofrimento de quem trabalha.
 
Quem detém o capital necessário para empregar força de trabalho, precisa fazê-lo, dentro do ambiente capitalista, de sorte a retirar o máximo proveito possível dessa força de trabalho. Por isso, precisa considerá-la uma mercadoria, um “fator de produção”. Não se trata aqui, é bom que se esclareça, de maldade do empregador ou da análise de comportamentos perversos, que também existem e revelam sintomas de doenças cada vez mais comuns em nosso tempo.
 
Trata-se de reconhecer a existência de uma perversidade objetiva, que decorre da própria forma de organização social que adotamos.
 
Se admitimos troca de tempo de vida por remuneração, dentro de uma lógica na qual a força de trabalho deve se comportar como fator de produção da empresa, admitimos o assédio do trabalhador no ambiente de trabalho como um dado de fato com o qual temos de lidar.
 
Temos certa dificuldade de encará-lo sob essa perspectiva, mas basta pensarmos em quem é o melhor empregado. Certamente não será aquele que contesta ordens, se atrasa, traz seus problemas familiares para o trabalho, adoece. Certamente não será o trabalhador ou trabalhadora que agir como ser humano no ambiente de trabalho.
 
Quanto mais cordato, obediente, eficaz e pontual, melhor será o empregado, afinal de contas o empregador compra 8h, 10h, 12h do seu dia e pretende (legitimamente, como alerta Marx) que o produto comprado lhe seja devidamente entregue.
 
Consequências que são pensadas pelo trabalhador e trabalhadora
 
Podemos também pensar na forma como disciplinamos as hipóteses de término do vínculo de trabalho, quando um dos elementos dessa relação social não cumpre as obrigações que assumiu, para que tenhamos uma noção dessa realidade. O empregado, se pratica justa causa, sofre não apenas a perda sumária do emprego, mas também de pelo menos seis outros direitos previstos na Constituição: aviso prévio, férias (remuneração com acréscimo de 1/3) proporcionais, gratificação natalina proporcional, acréscimo de 40% sobre o FGTS, liberação do FGTS e benefício do seguro-desemprego.
 
O empregador, quando comete falta grave, nada sofre. Pode deixar de pagar salário, promover um ambiente adoecedor, exigir jornada ilegal, e terá como consequência a possibilidade jurídica de discutir sua conduta em um procedimento, que talvez dure mais de dois ou três anos, para que ao final do Estado determine, caso provada a justa causa, que efetue exatamente o mesmo pagamento a que o empregado teria direito, na hipótese de despedida sem o cometimento da falta grave.
 
E durante o tempo do processo, via de regra, o trabalhador não terá assegurado seu trabalho, sua fonte de subsistência, sofrendo prejuízo concreto e irreversível, não apenas da perspectiva econômica, mas sobretudo da perspectiva emocional, social e humana.
 
Outro exemplo muito claro de que a relação de trabalho subordinado traz consigo a potencialidade do assédio é o reconhecimento de “poderes” ao empregador. O artigo 2º da CLT diz que empregador é quem dirige a prestação pessoal de serviços, imputando-lhe, portanto, um dever de conduta. Ainda assim, compreendemos que há uma legitimação do uso da força no ambiente de trabalho.
 
Uso que denominamos, de modo eufemístico, como poder de direção, poder de “disciplina” (como se o trabalhador fosse uma criança a ser ensinada pelo empregador), poder de punição. Não há dispositivo legal que legitime a aplicação de penas contra o empregado. Mesmo assim, naturalizamos práticas (que sequer tem previsão legal) de advertências, “ganchos” (suspensões) e outras punições no ambiente de trabalho.
 
Trata-se de elementos estruturantes do assédio, porque instauram uma realidade na qual a posição do empregado é sempre de sujeição às ordens e à vontade de quem faz as vezes do empregador.
 
Na realidade das relações de trabalho, portanto, o trabalhador acaba abrindo mão de expressar sua subjetividade, evita tratar de seus problemas pessoais, assume como seu o ritmo das máquinas ou da quantidade de consumidores a serem atendidos, cala-se, quando gostaria de falar.
 
O recalque impresso nesse trabalhador acaba transformando-se em adoecimento, irritabilidade, dificuldade de relacionamento social, ou até no esgotamento completo das capacidades físicas e mentais para realmente “viver” no mundo.
 
Ao contrário do que nos ensinam, isso não tem que ser assim.
 
É possível pensar em uma relação entre capital e trabalho sob bases diversas, mas aí, é claro, não estaremos mais tratando de um sistema capitalista de produção. Esse é, pois, um outro discurso, que extrapola o tema aqui tratado. A questão importante de ser ressaltada é que, mesmo lidando com o sistema que temos e renunciando a pretensões de mudança estrutural, é necessário que reconheçamos esse dado objetivo da realidade assujeitadora e, nesse sentido, assediadora, do ambiente de trabalho.
 
Algumas características atuais das formas de exploração do trabalho pelo capital aguçam essa perversidade objetiva. Jornadas inconstitucionais de 12h, como as permitidas pela “reforma”, inclusive por acordo individual e com supressão do intervalo, são objetivamente assediadoras porque levam os trabalhadores à exaustão, impedem uma vida criativa fora do trabalho.
 
Se aliarmos essa jornada ao tempo de deslocamento entre casa e trabalho, não é difícil concluir que essas trabalhadoras e trabalhadores passam todo o seu tempo (enquanto acordados) envolvidos com o trabalho, muitas vezes em ambientes hospitalares ou extremamente tensos, como o dos vigilantes.
 
As jornadas de 8h, limite conquistado em nível internacional há exatos cem anos, na Convenção 01 da OIT, já deveriam ser questionadas, seja em razão dos estudos que demonstram a possibilidade de sua redução em razão das tecnologias desenvolvidas, seja porque não há razoabilidade em passar um terço do dia no ambiente de trabalho, tendo apenas um terço para todo o resto: ler, estudar, namorar, fazer política, fazer nada… afinal, no restante do tempo precisamos dormir, para repor a força de trabalho.
 
O assédio moral e a lógica de gestão por metas
 
A lógica de gestão por metas, que aliada a um sistema de pagamento variável, ambas incentivadas pela “reforma”, promovem um ambiente altamente assediador.
 
Eis aí algo que realmente vem sendo banalizado. O fato objetivo de remunerar por metas, sem qualquer parâmetro, dá necessariamente ao empregador um poder discricionário e abusivo de lidar com a vida profissional de seus empregados.
 
O trabalho realizado para “bater metas”, via de regra impostas de cima para baixo, variáveis em curto período de tempo e determinantes do valor final do salário, é um trabalho destituído de sentido. Não é o atendimento ao consumidor e a resolução do problema que importam; importa atender pelo menos 20 pessoas na mesma jornada.
 
A exigência de metas está de tal modo naturalizada, banalizada, que interfere diretamente na organização do Poder Judiciário e, pois, no trabalho dos próprios juízes, dificultando o reconhecimento social de sua perversidade. No Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região várias pessoas cometeram suicídio. O fato motivou revolta entre os servidores, que denunciam “assédio institucional”, alertando para as consequências sociais e pessoais da cobrança excessiva de metas.
 
A cobrança de metas é uma forma de “gestão de pessoal” própria da atividade privada, cujo “sucesso” se verifica especialmente a partir da década de 1970, com a reestruturação dos empreendimentos (gestão em rede) e a invasão da lógica japonesa de produção e cobrança nas atividades.
 
Alguns setores são emblemáticos dessa realidade de assédio estrutural objetivo, pela cobrança de metas, como é o caso dos motoristas que tem tempo e quantidade de entregas como fatores decisivos para a composição do salário, obrigando-se a dirigir por um número excessivo de horas e, com isso, colocando em risco não apenas a própria vida, mas também a de terceiros.
 
Os vendedores que, conforme dizem as empresas em seus defesas, “trabalham em jornada extraordinária porque querem”, que precisam estender seu tempo de trabalho, até o limite de sua capacidade, a fim de obter um número de vendas que permita remuneração minimamente razoável no final do mês.
 
O assédio estrutural também está presente no controle panóptico da atividade do operador de telemarketing, em que temos um quadro de vigilância assediadora constante.  Há controle das idas ao banheiro, do tempo das ligações, do conteúdo dos diálogos. Os ambientes de trabalho são divididos em “baias” ou “PA´s”, pontos de atendimento divididos por biombos para que os trabalhadores não conversem entre si.
 
O discurso liberal sempre insiste em referir que o capitalismo não admite insegurança, exigindo-se, em razão disso, por exemplo, previsibilidade nas decisões judiciais, para que o mercado não fique “nervoso”. Ora, como é possível então que lidemos de modo tão natural, com a existência de ambientes de trabalho inseguros, nos quais o trabalhador nunca sabe se vai conseguir alcançar a meta (via de regra variável) e, portanto, sequer tem condições de saber qual será a sua remuneração.
 
A gestão por metas e a prática de remuneração variável, transferindo para o empregado a responsabilidade pelas dificuldades na venda de um produto ou na manutenção de um cliente, geram precariedade e medo constantes, obrigando os trabalhadores a agirem como se tivessem de lutar diariamente contra os próprios colegas, sob a ameaça real de perda da função ou mesmo do emprego.
 
Percebam: a presença de um assediador perverso em ambientes como esses é quase uma demasia. As condições objetivas de um sistema que estamos propositadamente deixando falir são já suficientes para formar o quadro de assédio.
 
À gestão por metas soma-se uma realidade de sucateamento das condições de trabalho, que se evidencia especialmente, mas não apenas, na atividade docente e no trabalho em hospitais. Os professores de escolas e universidades públicas que funcionam sem segurança, sem material adequado, com salas abarrotadas de alunos, precisam lidar com a essa realidade objetiva que, somada à baixa remuneração, promovem um assédio tão silencioso quanto destruidor.
 
Vínculos precários, violência contra trabalhadores
 
A baixa remuneração e a precariedade do vínculo (já que ainda não reconhecemos o direito à garantia contra a despedida) aliam-se à falta de respeito à autoridade do professor, tanto por parte dos alunos quanto dos pais, e à lógica de consumo, na perspectiva de que o pagamento da mensalidade ou o ingresso por vestibular, investe as famílias no direito ao resultado positivo nas avaliações de seus filhos.
 
O relato de professores agredidos, verbal ou mesmo fisicamente, por alunos adolescentes, e o nível de estresse que esses profissionais estão atingindo já é alvo de pesquisas especializadas. E isso não é de agora, mas não há dúvida que um ambiente assediador em razão das características do sistema, se potencializa quando o discurso da exclusão, da violência, do ódio ao que é diverso torna-se o discurso oficial. O exemplo de Suzano está aí para comprovar isso.
 
Nos hospitais, em que faltam leitos, remédios e mesmo condições mínimas de trabalho decente, os profissionais da saúde realizam jornadas de mais de 12h. E dificilmente trabalham em um só local. Atuam, portanto, sob a constante pressão da precariedade e o desgaste do tempo. Muitos profissionais dessa área são envelhecidos, tristes, doentes, porque passam tempo demais no ambiente de trabalho, lidando com a falta de condições para um trabalho digno. Isso é objetivamente assediador.  
 
A precarização dos vínculos, com a contratação temporária ou intermitente, também potencializa as possibilidades de assédio.
 
Empregados que recebem apenas quando são chamados para trabalhar concorrem entre si. Eles disputarão a “preferência” do empregador, para que voltem a ser chamados. Práticas como a da revista pessoal também são assediadoras, pois passam a informação subliminar de que trabalhadoras e trabalhadores são potencialmente ladrões.
 
Terceirização e o assédio moral
 
Outro fator objetivo gerador de ambiente assediador é a terceirização. A terceirização fragmenta a classe trabalhadora, burla o critério de contratação por concurso público (art.37 da CF), precariza as condições de trabalho, impedem a fruição das férias, em razão da constante troca de prestadoras de serviço. Há pesquisa do DIEESE demonstrando que as empresas prestadoras duram em média 2,3 anos, ou seja, apenas o tempo necessário para ganhar dinheiro com a exploração da força de trabalho e dar lugar a outro atravessador.
 
Assim, quando os empregados teriam o direito de exigir a fruição das férias, inicia-se, de forma fictícia, outro “contrato”, retornando ao salário inicial da profissão (e, portanto, com redução real dos rendimentos). As férias – pagas na rescisão – acabam não sendo fruídas, porque supostamente um novo vínculo se inicia. Isso sem considerar o drama social desses trabalhadores que, a cada troca de prestadora, temem – como eles mesmos relataram durante as entrevistas – serem descartados pelo “novo” empregador.
 
Em relato feito em evento que debatia a terceirização junto aos estudantes de administração da UFRGS, a professora Fernanda Tarabal referiu o depoimento de um trabalhador terceirizado, com formação em ensino superior, que revelou constrangimento em usar crachá de cor diferente e ter que, todos os dias, ingressar por portão diverso da mesma repartição pública, já que o acesso dos funcionários não era franqueado aos terceirizados.
 
Também nesses casos, há necessariamente uma disputa interna, uma concorrência entre o trabalhador diretamente contratado e aquele terceirizado, que almeja fazer parte dos quadros da empresa ou instituição pública. Questões salariais, de condições do ambiente de trabalho, de assédio moral coletivo, não são mais identificadas (como já ocorre em ambientes invadidos pela terceirização) como questões comuns. Cada grupo trava a sua luta.
 
A identificação dos trabalhadores no ambiente de trabalho é a condição histórica de sua organização coletiva em sindicatos e comissões de fábrica. A terceirização tendencialmente rompe esse laço social.A lógica econômica e desvirtuada de licitar pelo menor preço, faz com que prestadoras de serviço sem qualquer patrimônio (muitas vezes sem sede própria) ganhem licitação, trabalhem por seis meses ou um ano e depois sumam no ar sem deixar vestígios.
 
A terceirização cria uma classe de indivíduos invisíveis, para os quais não são negados apenas direitos, mas também o próprio reconhecimento da condição de trabalho.
 
Nas atividades de limpeza e conservação, por exemplo, seres humanos trabalham sem que os empregados da “tomadora dos serviços” saibam seus nomes ou mesmo os cumprimentem.
 
Nas entrevistas que fizemos no vídeo Terceirizado: um trabalhador brasileiro, era curioso e triste perceber a forma como os trabalhadores verbalizavam essa realidade. Alguns deles trabalham em gabinetes de Ministros. Todos, porém, referem a mesma situação: são discriminados entre os colegas e vivem com o medo constante da perda do posto de trabalho.
 
Uma trabalhadora referiu que a cada troca de prestadora passam por momentos de tensão. Quem é “nó cego” corre mais risco de perder o posto. E explica que “nó cego” é o empregado que adoece e “põe atestado”. Outro trabalhador mencionou que se tranquiliza quando sabe que a nova prestadora assumirá o posto “de porteiras fechadas”, o que significa que ninguém será despedido. Essa constante ameaça da perda do emprego, por parte dos terceirizados, e da perda do posto de trabalho, pelo servidor que poderá ter seu setor terceirizado, gera uma tensão objetivamente assediadora.  
 
A terceirização prejudica não só os servidores públicos atuais, mas também os futuros. Os que almejam exercer carreira pública enfrentarão cada vez mais – quanto mais a terceirização avançar – a ausência de concursos, a impedir seu ingresso. Já estamos vivendo isso hoje.
 
Os que hoje já fazem parte do quadro de servidores públicos precisam conviver com esse ambiente de discriminação, muitas vezes realizando as mesmas tarefas, em condições de salário e de trabalho absolutamente diferentes daquelas experimentadas por terceirizados, sem que possam agir para alterar essa realidade. Quando precisam se organizar para fazer greve, não conseguem contar com o apoio dos trabalhadores terceirizados, exatamente porque suas pretensões não são identificadas como objetivos comuns.
 
A potencializar todas essas características da relação entre capital e trabalho o Estado atua como agente legitimador dessa perversidade objetiva, recalcando nos trabalhadores a noção de que está tudo certo, que ser humilhado, sujeitar-se a salários variáveis cujos critérios de aferição são misteriosos, submeter-se a metas inatingíveis ou não ter sequer o direito a reconhecer e sentir-se como partícipe no ambiente de trabalho são circunstâncias normais, que devem ser assimiladas pelo trabalhador.
 
Há ainda a questão da saúde física e mental, negligenciada por empregadores e pelo Estado. Nossa jurisprudência, por exemplo, até hoje não admite a cumulação de adicionais diversos (insalubridade; periculosidade e penosidade), mesmo que a lei não restrinja. A racionalidade moderna, com a construção histórica da noção de liberdade como a capacidade de ser proprietário para alienar e adquirir, a que fiz referência no início desta fala, é o que legitima um conceito de liberdade como capacidade de alienar a si mesmo (a sua força de trabalho).
 
Somos livres para contratar nosso tempo de vida e nossa saúde, inclusive mediante fixação de valores para a exposição ao dano efetivo (adicional de penosidade e de insalubridade) ou ao risco de morte (periculosidade). Daí para a compreensão de que é possível sujeitar uma pessoa a várias espécies diversas de risco e dano efetivo à saúde, é apenas um pequeno passo. A ótica pela qual a matéria passa a ser examinada é, então, econômica. À premissa de que proteger a saúde física e mental de quem trabalha interessa à sociedade, constituindo valor fundante dentro da lógica de viver bem com os outros, impõe-se a premissa de que o empregador não pode ser onerado com o custo do trabalho.
 
A lógica econômica de que custa bem menos pagar um adicional de salário (mesmo sujeitando o empregado a dois ou mais agentes nocivos) do que tornar o ambiente seguro, reduz a qualidade de vida e, por consequência, o convívio social saudável dos trabalhadores. E os trabalhadores não constituem uma espécie a parte de seres humanos, que podem passar todo o tempo trabalhando ou sujeitar-se a condições penosas, insalubres e perigosas reduzindo sua possibilidade de vida saudável, sem que isso interfira em todo o tecido social.
 
O que quero expressar aqui, como argumento que talvez atinja aqueles que se preocupam mais com as repercussões econômicas da lei do que com seu caráter de construção social, é que a economia que o empregador faz, ao deixar de pagar todos os adicionais de salário devidos, tem um custo social que atinge a todos, indiscriminadamente.
 
O custo de uma sociedade de pessoas doentes é uma sociedade doente, com alto custo previdenciário, com uma “produção” menos qualificada, com a disseminação do assédio, e que reproduz miséria e revolta.
 
A Constituição determina a permanente redução dos riscos e dos danos à saúde de quem trabalha. Deveríamos, portanto, estar lutando pela eliminação desses agentes, e não pela remuneração do mal que causam.
 
É difícil combater uma lógica perversa quando a praticamos.
 
Há uma inversão de valores que é bem percebida se prestarmos atenção na linguagem utilizada no mundo do trabalho: colaborador em lugar de empregado; desligar em lugar de despedir.
 
Conclusões
 
Tudo isso, atualmente, soma-se a uma gestão perversa da coisa pública, com o congelamento dos gastos com moradia, educação, trabalho e saúde por 20 anos (EC 95); “reformas” que nada tem de reformadoras, são verdadeiros desmanches promovidos na educação, no ambiente de trabalho e no sistema de seguridade social. Exemplo disso é a chamada “reforma” da previdência.
 
Novamente o eufemismo do termo “reforma” mal esconde do que verdadeiramente se trata: uma perversa investida contra o sistema de seguridade social, que traz em seu pacote o aumento da idade e do tempo de contribuição para a aposentadoria, dificulta acesso a benefícios, reduz valores e praticamente termina com aposentadorias especiais como a dos professores, dos trabalhadores rurais ou daqueles que trabalham em contato direto com agentes insalubres.
 
A investida para a extinção da Justiça do Trabalho, por um governo cujo primeiro ato foi extinguir o Ministério do Trabalho, se dá não apenas com campanha pública hostilizando que busca seus direitos e com alterações inconstitucionais da legislação trabalhista, mas também com corte orçamentário absurdo, como aquele que reduziu em 50% o orçamento para os gastos já previstos e em 90% o orçamento para investimentos na Justiça do Trabalho no ano de 2016.
 
O Direito nada mais é do que a forma jurídica escolhida para atender às necessidades do capital. Essa afirmação, que parece ousada, é em realidade singela: nossas estruturas jurídicas atuam para que as coisas permaneçam como estão. Em algumas situações, no movimento complexo e dialógico das relações humanas, servem também para limitar ou desafiar essa lógica, como é o caso do Direito do Trabalho.
 
Quando isso ocorre, porém, o movimento de contenção ou mesmo combate às conquistas sociais que desafiam a lógica das trocas é tão intenso que por vezes nos cega. Quando tratamos das indenizações por assédio moral no ambiente de trabalho, não podemos descurar essa realidade: não estamos enfrentando o problema, estamos apenas administrando a doença.
 
Portanto, a resistência que precisamos exercer, quando o tema é a saúde, física ou psíquica do trabalhador e, portanto, da sociedade em que vivemos, é exatamente o resgate da função que o Direito do Trabalho exerce, de contenção e imposição de limites à exploração do trabalho pelo capital. O resgate do projeto de sociedade contido na Constituição de 1988, que se propõe constante redução dos riscos inerentes ao trabalho, mediante construção de um meio ambiente de trabalho saudável.
 
As condições de agressão à saúde física e psíquica do trabalhador devem ser combatidas e não naturalizadas. Para isso, é urgente retomar o que está no princípio do Direito do Trabalho. E no princípio está a proteção a quem trabalha. Essa noção de proteção, que legitima e justifica a existência mesma de um direito fundamental dos trabalhadores, precisa contaminar nosso olhar para as relações sociais e as normas jurídicas que as disciplinam.
 
O assédio no ambiente de trabalho existe, está disseminado, banalizado e legitimado pela atuação dos agentes sociais e, sobretudo, do próprio Estado. As pessoas estão adoecendo, estão entristecendo, e nós temos responsabilidade sobre isso. O direito ao pagamento de adicionais de salário pelo risco de morte ou acidente e pelo dano efetivo à saúde é algo a ser superado.
 
Precisamos evoluir a ponto de elidir a existência mesma de circunstâncias nocivas. Portanto, deveríamos estar lutando pela supressão dos agentes insalubres, penosos e perigosos no ambiente de trabalho. Pela supressão das metas; pela supressão do salário variável; pela supressão da prática ilegal de exercício de poder punitivo pelo empregador; pela completa supressão de qualquer possibilidade de terceirização.
 
Essa luta vai determinar objetivamente a redução do assédio nos ambientes de trabalho. E, é claro, se quisermos realmente viver em ambientes saudáveis, capazes de potencializar nossa capacidade criativa, de eliminar o caráter assujeitador do trabalho subordinado, precisamos falar sobre uma nova forma de organização social, que supere a já falida e segregaria sociedade do capital. Até que isso ocorra, porém, é preciso pelo menos assumir a opção que fizemos em 1988 e batalhar por condições de trabalho compatíveis com o projeto social contido na Constituição.
 

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