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Os pesos da balança da justiça: custeio e liberdade sindical no STF

Fonte: Jota / Renata Queiroz Dutra e João Gabriel Lopes
 
O sindicalismo atravessa uma de suas mais desafiadoras fases históricas


 
O julgamento da ADI 5794 pelo STF, no bojo do qual foi reputado constitucional o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical no país (arts. 545, 578, 579, 582, 583, 587 e 602 da CLT, com a redação conferida pela Lei nº 13.467/2017 – Reforma Trabalhista), trouxe a lume a complexidade da questão sindical no Brasil e, sobretudo, as dificuldades de compreendê-la.
 
A decisão proferida pelo STF, por maioria, importou a apresentação de argumentos, comparações e pragmatismos que revelam o distanciamento entre os atuais debates da nossa Corte Constitucional em relação ao conteúdo social da Constituição de 1988, como bem demonstraram Cristiano Paixão e Ricardo Lourenço em artigo publicado neste site.
 
A despeito da fundamentação contida no voto do relator, ministro Luiz Edson Fachin, que primou pela observância do caráter sistemático da nossa ordem jurídica, prevaleceram os argumentos capitaneados pelos ministros Roberto Barroso e Luiz Fux, que caminham com a jurisprudência da Corte americana e com a maximização da ideia de liberdade individual, a despeito das peculiaridades da nossa ordem jurídica em relação às organizações coletivas.
 
O sindicalismo atravessa uma de suas mais desafiadoras fases históricas. Afora as particularidades do desenvolvimento das relações de trabalho em cada país, o processo atualmente observado deriva, em grande parte, das substanciais modificações experimentadas nas relações de produção e de alterações da correlação de forças políticas em todo o mundo desde o último quartel do século XX.
 
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam que, muito embora se tenha verificado um grau cada vez maior de trabalhadores abrangidos pelas negociações coletivas, os níveis de sindicalização na maior parte dos países com dados disponíveis encontra-se abaixo dos 30%. No caso brasileiro, por exemplo, os dados mais recentes, de 2014, indicam um total de mais de 70% de trabalhadores cobertos por normas derivadas de negociações coletivas, enquanto que a taxa de sindicalização tem se mantido abaixo de 20% há mais de uma década.
 
Tais constatações apontam, já há algum tempo, para a necessidade de uma revisão do quadro político-jurídico da atuação sindical. Não por outra razão, deu-se a iniciativa, ainda no ano de 2004, da instalação do Fórum Nacional do Trabalho, cujos esforços, após a interlocução de representantes de empregadores, empregados e Estado, resultaram na propositura de uma ampla reforma da organização sindical brasileira.
 
Já naquele momento, sinalizava-se para a necessidade de: a) alteração do modelo de representatividade sindical, que rompesse com a lógica da categoria e da base territorial; b) superação do modelo da unicidade sindical existente desde os anos 1930; e c) modificação do formato do custeio sindical, rompendo-se com a lógica do “imposto” sindical e implantando-se gradualmente a adoção de dois modelos de contribuições – associativa, como derivação da condição de sócio da entidade, e negocial, decorrente do fato de o trabalhador, independentemente da condição de sócio, beneficiar-se da negociação coletiva.
 
É importante situar que, embora seja membro da Organização Internacional do Trabalho, que tem a liberdade sindical como princípio fundamental, o Estado brasileiro não ratificou a Convenção nº 87 da OIT, que cuida do tema, tendo reafirmado, na Constituição de 1988, que a ideia de liberdade sindical no país seria mitigada por dois institutos: a unicidade sindical e a contribuição sindical obrigatória. Repita-se: a contradição, que é problemática para o país em termos do desenvolvimento do seu direito coletivo do trabalho,  estava assentada em dois pilares que conformam o sistema sindical brasileiro (a unicidade sindical e a contribuição sindical obrigatória), e não em apenas um (contribuição sindical obrigatória). É dizer: a democratização das relações coletivas de trabalho no país, que por força das convenções nº 144 e 154 da OIT deveria ter sido amplamente debatida com trabalhadores, empregadores e Estado (o que não aconteceu no processo de elaboração da Lei nº 13.467/2017), passaria necessariamente pela revisão simultânea desses dois pilares.
 
No apagar das luzes do ano de 2016, o mundo do trabalho foi surpreendido com a apresentação de uma proposta legislativa do governo Michel Temer que objetivava alterar aspectos específicos da legislação trabalhista. Do ponto de vista do direito coletivo do trabalho, dois eram os pontos da proposição que representavam um impacto mais substancial: a regulamentação da figura do representante dos trabalhadores no local de trabalho e a possibilidade de prevalência de normas coletivas sobre as regras de ordem pública trabalhista, em apenas alguns aspectos da legislação laboral.
 
O que se seguiu é de amplo conhecimento. Em apenas dois meses, a Câmara dos Deputados aprovou mais de uma centena de modificações da regulamentação do trabalho no Brasil, incluindo a possibilidade de prevalência do negociado sobre o legislado em qualquer aspecto não expressamente vedado por lei e, especificamente quanto ao custeio das entidades coletivas, a facultatividade da contribuição sindical.
 
O rápido – e desajustado – processo de aprovação do projeto de lei no Senado Federal fez, então, com que a realidade sindical sofresse uma reviravolta em apenas sete meses. Se, antes da recém-aprovada Lei nº 13.467/2017 (Lei da Reforma Trabalhista), era vedada a atuação sindical em prejuízo dos direitos individuais legais garantidos ao trabalhador – salvo as exceções constitucionais –, os sindicatos viram-se, de repente, diante da possibilidade concreta de uma eventual fragilização de sua posição negocial resultar em prejuízos a todos os seus representados. Viram-se, ainda, privados da garantia de acesso a uma de suas principais receitas: o conhecido “imposto” sindical, contribuição parafiscal que, agora, para que fosse repassada ao sindicato, ficaria “condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional” (art. 579 da CLT reformada).
 
E, não bastasse a limitação ao controverso “imposto” sindical, foi também introduzida a expressa vedação da estipulação de normas coletivas que previssem o desconto de contribuições negociais de não associados às entidades sindicais. Isso porque o novo artigo 611-B da CLT assegura a empregados e empregadores o “direito de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”.
 
Importante registrar que, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, com o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical, sem previsão de fonte alternativa de financiamento, os sindicatos perderam, no primeiro semestre de 2018, 88% dos seus recursos e agora encontram-se abruptamente fragilizados na luta pelos direitos dos trabalhadores, que ganhou contornos ainda mais críticos com a prevalência do negociado sobre o legislado.
 
Diante desse cenário, seria mais que esperada a emergência de questionamentos em relação à legitimidade e à constitucionalidade da alteração efetuada. Não por outra razão, foram ajuizadas dezoito ações diretas de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF), promovidas por entidades representativas de trabalhadores e empregadores, com o objetivo de questionar a modificação legislativa referente ao custeio sindical.
 
O julgamento foi concluído em 29/6/2018. Na racionalidade que orienta o voto vencedor, à parte a negação da jurisprudência histórica do STF no sentido de reconhecer natureza jurídica tributária à parcela (num “espetáculo” argumentativo digno de nota), aparecem três eixos principais: o excessivo número de sindicatos no país, a ideia de que é preciso garantir “eficiência” dessas instituições, com base em estímulos econômicos, e a valorização da liberdade, inclusive de expressão, do indivíduo que se associa ou não ao sindicato. Nesse último eixo, faz-se referência à jurisprudência da Suprema Corte americana.
 
Espanta, na decisão, a falta de parâmetros científicos para comparação entre o número de sindicatos no país e o número de sindicatos em outros países, notadamente quando desacompanhada tal observação de considerações sobre a estrutura sindical e jurídica de cada uma das nações envolvidas.
 
Salta aos olhos, também, a ausência de compreensão histórico-sociológica do fenômeno do sindicalismo brasileiro, que é tratado, a partir de referências da análise econômica do direito, meramente como um conjunto de instituições voltadas à consecução de resultados, baseados na lógica de investimento/proveito, supostamente parametrizados de forma objetiva, sem diálogo com os conceitos de solidariedade, ação política e liberdade sindical coletiva, que emanam da formação histórica do direito coletivo do trabalho. A rigor, se tal concepção for levada ao extremo, será desarticulado por completo o dever de representação obrigatória dos sindicatos, o que fomentaria decisões (já observadas pontualmente) no sentido de que os trabalhadores que não contribuam para a entidade coletiva não sejam também beneficiados por sua atuação, inclusive quanto aos frutos da negociação entabulada pelo ente sindical.
 
Por outro lado, a referência à jurisprudência norte-americana desconsidera que, naquele país, a liberdade sindical tem nuances absolutamente distintos, conforme se extrai da decisão do caso Janus v. American Federation of State, County and Municipal Employees, recentemente julgado pela Suprema Corte norte-americana. O caso, tomado por paradigma no voto do ministro Luiz Fux, tratava da compatibilidade entre a contribuição paga pelos servidores públicos representados pela entidade sindical e a Primeira Emenda à Constituição norte-americana, sob a ótica da liberdade de expressão, restringindo-se a análise ao caso das contribuições compulsórias estipuladas por sindicatos durante negociações coletivas. A Suprema Corte decidiu que, em se tratando do Estado-empregador, a ação política sindical poderia ser agenciada pelo ente público, prática reprimida no âmbito daquele tribunal. O caso, portanto, é substancialmente distinto da matéria que passou a ser discutida após a Reforma Trabalhista.
 
Mas o ponto alto desse julgamento vem no voto do ministro Luiz Roberto Barroso, que percebeu não ser possível se omitir sobre a questão da unicidade sindical no Brasil. Nesse ponto, o ministro – vale aqui lembrar que lhe cabe a interpretação da Constituição Federal – declara a constitucionalidade da Lei nº 13.467/2017 e recomenda a revisão do art. 8º, I, da Constituição Federal, norma constitucional originária que versa sobre unicidade sindical, ao Poder Legislativo. É importante tornar claro o artifício: não se trata de compreender a compatibilidade da lei questionada com a Constituição, mas de validar a lei, recomendando que, na parte em que ela destoa da Constituição, a Constituição seja alterada! E aí cabe a pergunta: que natureza ostentam os fundamentos que orientam a decisão do ministro Barroso, se a Constituição não lhes dá guarida, já que precisaria ser alterada para tanto?
 
Diante da perplexidade dessa constatação, novamente temos que concordar com Paixão e Lourenço, no sentido de que o que tem orientado as decisões do Supremo não são mais os fundamentos da Constituição Cidadã de 1988, mas elementos extraídos de convicções pessoais (ou mercadológicas), que, para se sustentarem com circularidade argumentativa, precisam, literalmente, reescrever a Constituição.
 
Em face do cenário que se consolidou com o julgamento pela mais alta corte do país, resta ao menos acreditar que serão respeitadas as deliberações dos trabalhadores que versem sobre o custeio da entidade que, por expressa disposição constitucional, detém o dever de representação compulsória. Como consectário de tal postura, deve-se reforçar o posicionamento recente do Ministério Público do Trabalho, que, por meio de sua Coordenação Nacional de Promoção da Liberdade Sindical (Conalis), indicou que a cobrança da contribuição sindical de toda a categoria pode derivar de autorização expressa decorrente da deliberação em assembleia regularmente convocada para esse fim.
 
Importante acompanhar, nessa esteira, se o antigo posicionamento do Supremo Tribunal Federal, de impedir o desconto da contribuição negocial de trabalhadores que, embora não associados aos sindicatos, beneficiam-se dos frutos da negociação coletiva, por coerência, será revisto quando do enfrentamento do tema no julgamento da ADPF 277, sob relatoria do ministro Edson Fachin.
 
É preciso compreender, por derradeiro, que assegurar fontes de financiamento sindical, compatíveis com as características do sistema jurídico brasileiro, é pressuposto para concretização da dimensão coletiva e positiva da liberdade de associação, consistente no direito fundamental a que a dinâmica de organização e funcionamento das entidades sindicais seja fruto das tensões, discussões, divergências e alinhamentos próprios da esfera essencialmente política dessas entidades.
 
Renata Queiroz Dutra – Professora Adjunta de Legislação Social e Direito do Trabalho da UFBA. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa “Trabalho, constituição e cidadania” (CNPq/UnB).
 
João Gabriel Lopes – Professor Assistente de Direito Material e Processual do Trabalho da Universidade Salvador (Unifacs). Sócio Coordenador da Unidade Salvador do escritório Mauro Menezes & Advogados.
 

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