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01/06/2023 - 11h47

“Há a necessidade de descentralizar a administração portuária. A centralização foi um equívoco da Lei n. 12.815”


Fonte: Jornal BE News
 
ENTREVISTA
ROBERTO OLIVA
Presidente do conselho da Intermarítima Portos e Logística S.A. e do conselho da Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP)
 
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva acertou na escolha da equipe do Ministério de Portos e Aeroportos, com a nomeação de profissionais experientes. Mas ações estratégicas ainda são aguardadas, como a descentralização das administrações portuárias, o fortalecimento dos conselhos de Autoridade Portuária (CAP), a redução das distorções verificadas nos contratos de arrendamento portuário, principalmente no prazo, e uma maior garantia da renovação das concessões. A análise é de um dos principais executivos do setor, Roberto Oliva, presidente do conselho da Intermarítima Portos e Logística S.A. e reeleito recentemente presidente do conselho da Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP). Em entrevista exclusiva ao BE News, ele destacou os pontos fortes deste início de governo, os aspectos que mais o preocupam e por que ele compara algumas situações vividas pelos empresários portuários a um manicômio. Confira a seguir.
 
Sr. Roberto, o governo do presidente Lula completa seus cinco meses de governo, cerca de 150 dias. Pastas mais estratégicas para o setor de transportes, como a de Portos e Aeroportos e a de Transportes mesmo já apresentaram suas primeiras estratégias. Temos mudanças de rumo, como no caso da desestatização das autoridades portuárias, que Brasília já descartou, e temos promessas de investimento, de retomada da industrialização. Qual sua avaliação sobre os planos do governo? Temos motivo para ficarmos otimistas ou pessimistas?
 
Leopoldo, existe o discurso e existe a prática. E a situação ainda não está totalmente definida. Nós vemos a felicidade de o ministro (de Portos e Aeroportos, Márcio França) ser um velho conhecido do segmento e conhecer o setor portuário. Isso foi muito bom. O ministro Márcio conhece bastante o setor. Quando era líder do PSB na Câmara, ele ajudou muito a ABTP (Associação Brasileira de Terminais Portuários) e o setor na negociação da 525 (Resolução n. 525/ 2015) e depois na Lei n. 12.815 (marco regulador do setor, aprovada em 2013). E também o nosso secretário (nacional de Portos e Transportes Aquaviários) Fabrizio (Pierdomenico) é um velho conhecido do setor, é um técnico extremamente preparado. Isso é muito positivo pois, em postos-chaves, nós não temos nenhum neófito. E na própria estrutura da secretaria também. A Mariana Pescatori (diretora de Novas Outorgas e Políticas Regulatórias Portuárias da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários), por exemplo, foi mantida. Outro bom nome é o secretário-executivo, Roberto Gusmão, ex-presidente (do Porto) de Suape e também conhece bem o setor. Então, em uma análise macro, vendo os cargos maiores, as lideranças, a gente tem a felicidade de ter pessoas bem competentes, que conhecem o mercado e tem um bom diálogo com os empresários e outras lideranças. Mas do ponto de vista de política pública, ainda não está muito claro. Estamos começando o sexto mês do governo e, nas companhias docas, ainda há indefinições. No meu ponto de vista e também no ponto de vista da ABTP, em relação às companhias docas, nós nunca pleiteamos a privatização. O que a gente sempre defendeu foi a profissionalização (da gestão), com uma participação maior dos operadores, seja através do restabelecimento do CAP (Conselho de Autoridade Portuária) deliberativo, seja através de modificações nos conselhos de administração. E há a questão das políticas de infraestrutura.
 
Especificamente qual questão?
 
Eu tenho dito em todos os fóruns de que participo - disse isso, na época da transição (de governo), para a Miriam Belchior (então coordenadora do Grupo de Transição de Infraestrutura) - a infraestrutura deve ser uma política de estado. O setor de infraestrutura demanda investimentos, são projetos de longo prazo. Ele não pode estar, a cada quatro anos, ficando à mercê de uma política de governo. Não é possível você ter um planejamento de longo prazo, se a cada quatro anos as diretrizes são revistas, se as regras da renovação antecipada (dos arrendamentos portuários), por exemplo, forem revistas. Isso cria uma insegurança jurídica muito grande. Quem já está no setor fica mais cauteloso e, no momento de investir, vai pensar duas vezes. A segurança é fundamental. E o atual governo sinaliza que o que já foi conquistado, o que já foi aprovado em Congresso, que já foi votado, pode não ser mantido. E essa avaliação não tem coloração partidária. Para o Brasil e para o mundo, seria muito importante que o governo mostrasse que as regras estabelecidas são e serão cumpridas. Mesmo que se mude uma política de governo, não se pode mudar aquilo que foi aprovado, aquilo que foi licitado, que foi privatizado. Há medidas que tiveram ampla divulgação, com análise de todos os entes federativos, que o aprovaram, e elas não podem ser revistas. Isso é muito ruim para o País. Veja que o risco está com a gente. Quem responde pelas operações portuárias, hoje, é o setor privado. No universo portuário, atualmente, quase tudo é privatizado, seja através dos arrendamentos, seja através dos TUP (terminais de uso privado).
 
Sobre alterações nas regras do setor portuário, o sr. se refere à proposta de se criar uma outorga para a renovação de contratos de arrendamento de terminais, que o Governo apresentou durante o Santos Export?
 
Esse ponto é de transcendental importância. Quando você participa de uma licitação (para o arrendamento de um terminal), ela lhe dá o direito à renovação (do contrato). A União só não vai renovar o contrato se você não estiver operando bem, se você tiver se recusando a fazer aqueles investimentos que foram pactuados, que seria sua obrigação. Isso é um direito. Você arrenda um terminal portuário por 70 anos. Tem uma primeira “perna” de 35 anos. E a outra é um direito seu. Você entrou naquela agenda. Não é possível que o Governo vá querer arrecadar mais uma outorga em cima do arrendatário. Isso vai onerar o setor, o comércio exterior e, no final, a própria sociedade.
 
A cobrança de uma outorga para renovação ainda é uma proposta, como enfatizou o secretário Fabrizio Pierdomenico. Há outras alterações nas regras do setor em vista?
 
Essa ideia deve ter sido lançada como um balão (de ensaio), para o secretário ver como o mercado reage. Eu não acredito que isso vá prosperar. Afinal, isso seria modificar o contrato que houve, com uma regra que não está prevista no edital de licitação. E a gente tem que respeitar aquilo que foi colocado no edital. São os contratos e os marcos jurídicos que dão a segurança para o investidor. E mesmo lançado assim, eu acho isso totalmente descabido. E quanto ao aspecto financeiro, não é por aí que o Governo vai melhorar sua arrecadação. Isso vai ocorrer com os investimentos, com aumento de capacidade, com geração de impostos, com geração de empregos, com uma melhor agilidade no comércio. E voltando às medidas necessárias ao setor, há ainda a necessidade de descentralizar a administração. A centralização foi um equívoco da Lei n. 12.815. A Lei n. 8630, que veio antes, foi fundamental para termos os portos com o padrão atual. Ela permitiu os investimentos, com as licitações dos terminais, e trouxe os CAP, que são estratégicos ao garantir a voz regional na administração portuária. Os CAP têm um modelo bem interessante, ao reunir representantes da comunidade portuária para participar da gestão dos complexos. Entre esses representantes, estão os operadores. E quando a Lei n. 12.815 veio, centralizou tudo em Brasília, tirou todos os poderes das companhias docas e tornou o CAP de um órgão deliberativo para um consultivo. Veja que a lei até retirou o papel fiscalizador das docas e passou para a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), que é o órgão regulador e se tornou mais fiscalizador – e nesse início, com um desejo de punição enorme. Graças a Deus isso foi revisto e a Antaq, hoje, tem outra postura. Mas eu ainda acho que esse poder de fiscalizar, executar e planejar tinha que voltar para as companhias docas.
 
Tanto o ministro dos Portos como o secretário de Portos têm defendido uma maior descentralização, com maiores poderes para as autoridades portuárias e aos CAP. O sr. considera isso possível?
 
Essa é uma situação interessante. Há, sim, a vontade do ministro Márcio. Mas o Governo tem dado sinais muito contraditórios em relação às políticas públicas. Na política fiscal, ele defende um maior rigor, mas depois dá incentivos e subsídios para carro popular. Fala que defende a energia verde, mas quer aumentar o consumo de combustíveis fósseis. Promete flexibilizar a questão ambiental, mas impede a exploração de petróleo na Região Norte (nas proximidades da foz do Rio Amazonas). Enfim, os sinais são contraditórios. Mas realmente espero que Fabrizio e o ministro Márcio França consigam essa descentralização, essa regionalização. O Brasil tem muitas realidades, tem uma imensidão geográfica e uma costa imensa, com cenários bem diferentes. Você não pode querer comparar um gigante como Santos com o Porto de Manaus, ou com o Porto de Belém, de Barcarena. Há diferenças até mesmo no modelo de exploração dos portos. Você tem os portos administrados pela União, tem os delegados aos governos estaduais, como Paranaguá, e os delegados aos municípios, como Itajaí. Então a descentralização será extremamente positiva, especialmente para as companhias docas, que iriam retomar a fiscalização de seus portos, de seus arrendamentos, que é a verdadeira missão delas.
 
Sobre o papel das autoridades portuárias, o Governo debate repassar os serviços de zeladoria, como gestão de acessos, dragagem de manutenção, para o setor privado. Essa é a solução?
 
Serviços como o de dragagem, de gestão do canal de acesso, isso deve ser privatizado. Pode ficar com um condomínio de usuários, com os operadores, com empresas, mas o importante é que seja privatizado, pois isso vai dar uma nova agilidade, uma outra capacidade.
 
E qual o melhor modelo para a gestão privada dos serviços de zeladoria? Uma gestão condominial, uma concessão a uma empresa?
 
Hoje, o Governo debate vários modelos. A iniciativa privada, inclusive, já propôs alguns deles. Mas não se pode ignorar que esses serviços terão custos e serão valores expressivos. Assim, quem for fazer isso terá de ser ressarcido. Não tem mágica. Você vai ter de pagar o convite para ir nesse banquete, pois ninguém vai se interessar de fazer essa atividade de graça, por caridade.
 
Mas há modelos, como o condominial, onde vai se buscar mais a eficiência do serviço do que margens de lucro.
 
Sim, mas você só consegue implantar tais modelos nos grandes portos, onde você tem muitos operadores, muitos terminais que podem se reunir em condomínio para realizar esse serviço. Em Santos, por exemplo, eu posso ter isso. Em Paranaguá, também. Mas em um porto menor, com dois arrendatários, será complicado. Eu não sei nem se vai ter interesse dos arrendatários. Então esse modelo terá de respeitar aspectos geográficos, as características de cada porto.
 
Quanto à regulação do setor portuário, qual o maior desafio do Governo atualmente?
 
Hoje, vemos uma distorção gigantesca nos terminais portuários, há uma assimetria muito grande. Isso já foi, inclusive, atestado em um amplo estudo do TCU (Tribunal de Contas da União). Há assimetrias entre os TUP e os terminais arrendados. E eu advogo que os TUP tenham até mais liberdade, mas também temos de melhorar as regras para os arrendamentos. No setor portuário, nesse senti do, há o nirvana e o inferno. E os TUP são o nirvana. Em relação aos arrendamentos, você tem contratos de 70 anos, 50 anos e com 10 anos e, muitas vezes, dentro de um mesmo ponto. E isso com licitações feitas na B3, com capex expressivo. Esses regimes diferentes são um manicômio. E ainda tem o calvário da renovação. Tem o caso de uma empresa cujo nome eu não vou citar, mas ela opera granéis líquidos. Ela está há cinco anos tentando fazer uma prorrogação, uma prorrogação com expansão, com investimento. E aí o processo chega em um órgão de fiscalização e eles pedem mais dados, mais mudanças. É um manicômio. Você não consegue fazer investimento, não consegue avançar. Esses cenários têm de ser mudados. Estamos discutindo isso na ABTP.
 
E qual sua proposta? 
 
Temos de ter contratos de arrendamento com um mesmo prazo. Eles podem até ter pernas diferentes, mas o prazo final deve ser garantido, com o direito à renovação. Você não pode ficar na insegurança se você vai renovar, não vai renovar. Somente assim, conseguimos fazer os investimentos de que a economia brasileira precisa.