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05/09/2022 - 11h27

Desestatização do Porto de Santos não tem competição nem futuro


Fonte: O Globo / Leonardo Coelho e Rafael Véras*
 
Governo se equivoca ao propor edital que limita ao mínimo a concorrência
 
Responsável por movimentar quase um terço das trocas comerciais brasileiras, o maior complexo portuário da América Latina está em vias de passar por um projeto de desestatização que ignora a competição e as perspectivas de expansão. O edital para privatização do Porto de Santos submetido à audiência pública impede a participação na licitação de: 1) arrendatários; 2) titulares de contrato de transição; 3) terminais de uso privado integrantes do complexo portuário; 4) armadores; 5) transportadores marítimos; 6) operadores portuários; 7) concessionários de ferrovias que, diretamente ou mediante direito de passagem, se interconectem com o porto; e 8) participantes dos respectivos grupos econômicos de qualquer das empresas mencionadas.
 
Todas essas pessoas jurídicas, por sua vez, só podem se consorciar: 1) detendo menos de 15% no consórcio; 2) conjuntamente, somando ao máximo 40% no consórcio; 3) sem participação, por meio de acordo de acionistas, do grupo de controle da concessionária.
 
Ou seja, tais restrições impedem a participação no leilão de toda e qualquer entidade privada que tenha conexão ou pertinência econômica com o Porto de Santos. Se o que se quer é desenvolvimento logístico, parece uma péssima ideia desenhar a desestatização do porto para que seja arrematada por uma instituição financeira, livre dessas restrições.
 
O quadro é agravado com a consulta pública do Ministério da Infraestrutura (Minfra) sobre a revisão da poligonal da área do Porto Organizado. Nela, o órgão propõe a retirada da Ilha de Bagres e do Largo do Canéu da área, fato que impede a futura expansão da área portuária. Sem elas, o porto fica fadado à estagnação e à escassez ao longo do tempo.
 
Haveria, no entanto, uma solução muito mais coerente para os dois temas.
 
Como bem se sabe, a competição entre serviços não acontecerá, uma vez que não haverá dois Portos de Santos. Quando se delega o direito de explorar um monopólio natural, é preciso reforçar a competição pelo serviço. Nesse sentido, a competição na licitação precisa ser estimulada ao máximo.
 
Em vez de se lançar no traiçoeiro "canto da sereia" de restringir a competição, atraindo para si o ônus de justificar tal decisão, o Minfra deveria prever uma regra de ampla competição, seguida da desincompatibilização do eventual vencedor. Quer dizer: todos podem competir. Entretanto, antes da assinatura do contrato, avalia-se se o adjudicatário passará a ostentar alguma posição em conflito de interesses. Sendo o caso, exige-se que ele aliene sua posição de controle, como por vezes ocorre em consequência de atos de concentração de mercado.
 
Amplificada a competição, as condições para que haja maior concorrência pelo serviço estariam dadas. Para assegurar a atratividade do certame e alinhar adequadamente os incentivos, permitindo um futuro ao porto, faltaria, ainda, tratar da poligonal.
 
Dois argumentos têm sido usados para se excluir do objeto da desestatização as áreas de expansão do Porto de Santos. O primeiro afirma que a Santos Port Authority (SPA) já é rentável e ficará ainda mais com a desestatização. Portanto, não se faz necessário que as áreas de expansão estejam dentro do objeto de delegação. O segundo defende que a possibilidade de expansão futura segue existindo, bastando ao concessionário pedir para obter mais áreas junto ao governo.
 
O fato de a SPA ser rentável não pode servir de critério norteador para a arquitetura jurídica e econômica da delegação do porto. O que deve ditar a expansão do porto é a demanda. Além disso, propostas licitatórias monetizam direitos (patrimônio jurídico, certezas), e não expectativas. Planejamento e investimentos precisam ser realizados, na maior extensão possível, com base em variáveis que se possa influenciar.
 
Caso não seja feito dessa forma, a própria União estará fabricando artificialmente a escassez de serviços portuários, em contradição com o próprio Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto de Santos. Como consequência, teremos a famigerada cobrança de preços supra competitivos e a estagnação do desenvolvimento do país na balança comercial.
 
*Leonardo Coelho e Rafael Véras são professores da pós-graduação em Direito da Infraestrutura e da Regulação na FGV Direito Rio e sócios no Braz, Coelho, Campos, Véras, Lessa e Bueno Advogados