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11/05/2020 - 02h45

Primeiras linhas de um Direito Ecológico do Trabalho: lições da pandemia


Fonte: Jota / Rodrigo de Lacerda Carelli*
 
Um novo Direito e uma nova razão do mundo são a resposta para o enfrentamento deste e dos próximos desafios da humanidade
 
A pandemia causada pela disseminação do vírus SARS-Cov-2, causador da doença COVID-19, tem várias lições a nos dar, se quisermos recebê-las. A primeira delas é a insustentabilidade absoluta do modelo anterior, baseado na exploração sem fim da mão de obra (rectius: seres humanos) e da terra (rectius: recursos naturais finitos do planeta Terra).
 
Nos próximos meses, e, muito provavelmente, anos, enfrentaremos dificuldades muito maiores do que estamos vivendo agora e ficará cada vez mais claro o fato do fracasso desse modelo, que em sua versão mais atualizada se encontra na passagem do neoliberalismo para o ultraliberalismo (que nada mais é do que o primeiro com suas intenções e métodos às escâncaras, como o autoritarismo e a plutocracia). Mas talvez mais importante constatar o fracasso é  identificar que a tragédia global está embutida no modelo neoliberal.
 
Essa é uma lição muito importante: os desastres ecológicos e sanitários – este, os do passado recente e os próximos –  tomam proporções catastróficas devido ao modelo. Em relação à crise da Covid-19, essa constatação é fácil: nosso estilo de vida tornou o vírus um potencial massacre de proporções mundiais. O vírus, provavelmente surgido de uma exploração animal claramente absurda, aproveitou-se da grande e furiosa circulação de pessoas no mundo para de maneira quase instantânea estar presente nos quatro cantos do mundo.
 
Entretanto, esta crise nos mostra que isso não seria suficiente para realizar o estrago que vivenciamos em termos de mortes, estilo de vida e economia: o que realmente causou o isolamento social e um alto número de mortes é a precarização de vida e trabalho e desmonte do Estado de Bem-Estar Social, tornando grande parte da população totalmente vulnerável.
 
Perceba-se que o que mantém o isolamento social como estratégia para combate à pandemia é justamente a insuficiência do sistema de saúde, sendo que os países em que não há um serviço público suficiente são e serão os mais atingidos, e aqueles com bom serviço público de saúde sairão melhor desta pandemia. Assim, é clara a ligação entre a presente crise e o modelo dominante.
 
Mas não é só isso: a constatação não é só de que a grandiosidade da crise é devida ao modelo adotado até aqui, mas também de que o neoliberalismo é absolutamente incapaz de fazer-nos sair dessa crise, para não dizer que ele só tem condições de piorar a situação. Assim, não se deve buscar a volta de uma normalidade que nos fez chegar até aqui, mas sim construir uma nova razão do mundo.
 
Essa nova razão do mundo pode bem ser a Social Ecologia. Outras lições que podem ser tiradas da pandemia indicam isso.
 
Temos que lembrar que a crise ecológica não foi suspensa com a pandemia: pelo contrário, ela se tornou mais visível. Águas límpidas surgem em balneários antes tido como inóspitos, céus azuis surgem acima de cidades antes que tinham um teto cinza sobre as cabeças de seus habitantes, salvando dezenas de milhares de vidas pela redução da poluição.
 
A continuação de uma sociedade baseada no consumismo levará à destruição do planeta, ou melhor, a extinção de nossa espécie e de milhares de outras que dependem de nossas ações. Deve haver claramente uma mudança na forma de vida na Terra no Antropoceno, baseada atualmente em um ilógico e insano axioma do crescimento eterno e contínuo, em um planeta finito, ou seja, de recursos também finitos.
 
Esse pressuposto só pode causar cada vez mais crises, progressivamente mais graves e mais traumáticas. Ora, justamente uma das lições mais claras da pandemia é que não precisamos comprar tanto. Se para salvar a economia temos que reabrir os negócios para voltarmos a comprar o que não precisamos nessas semanas de quarentena, o problema, logicamente, está na própria economia. Ou seja, uma outra economia deve ser criada, na qual não sejamos obrigados a comprar aquilo que não nos é necessário.
 
Outro ponto importante é a redução da nossa circulação. Esses dias trancafiados em casa demonstram que não é necessário que perambulemos tanto, o que nos expõe a todos os tipos de riscos e acarreta boa parte da poluição de nossas cidades. Se não iremos comprar tanto ou circular tanto, não precisaremos produzir tanto. E não é só isso: deveremos produzir de forma diferente, em cadeias locais de fornecimento, em produção e circulação direta, tanto de bens de consumo quanto de alimentação, aproveitando dos chamados “circuitos curtos” ou mesmo de tecnologias como as impressoras 3D. O comum deve estar presente nas novas formas de produzir e consumir.
 
Assim, o chamado “decrescimento” não será então tido como um mal, mas sim um objetivo a se atingir, um caminho e um método para a solução dos problemas dos seres humanos neste planeta. Isso somente será possível com a mudança do paradigma, é claro, e com o fim da lógica financeira como vetor da economia, com a eliminação do poder dos acionistas sobre os rumos das empresas e dos Estados, o que, no final das contas, determina a vida de todas as pessoas no mundo.
 
Obviamente deverá haver a redistribuição das riquezas no mundo para dar conta dessa nova realidade, por meio de tributos pagos pelos mais ricos a financiar as mudanças que deverão ocorrer para garantir uma relativa estabilidade na vida no planeta.
 
O Direito Ecológico do Trabalho será central na Social Ecologia. Para funcionar, de início, esse direito deve ser universal: seus destinatários não poderão ser classificados com o objetivo de eliminação de qualquer pessoa de sua abrangência. As categorias de empregado, trabalhador autônomo, trabalhador eventual, empresário, cooperado, todas perderão qualquer validade ou sentido. Outro ponto central do Direito Ecológico do Trabalho é uma radical mudança no que se considera como trabalho.
 
A pandemia nos ensinou que as pessoas têm diversos afazeres além do que se considera hoje como trabalho, ou seja, a realização de tarefas para outra pessoa em troca de remuneração. Na crise do Coronavírus percebemos claramente a centralidade das tarefas de reprodução social. Isoladas em casa, as pessoas compreenderam a importância do trabalho doméstico e do cuidado para a economia, ou melhor, para a vida na sociedade. É inegável que isso seja trabalho e é inadmissível que não seja valorizado.
 
O aprofundamento da relação das pessoas com os instrumentos virtuais e online faz com que as pessoas cada vez mais percebam que isso é trabalho: lives, posts, curtidas, textos, mensagens, tudo isso é trabalho que gera riqueza na sociedade e devem ser consideradas como tal. A higiene pessoal e cuidados com a saúde, como idas a médico e a dentista, ou cortar o cabelo, fazer pedicure e exercícios físicos, meditação, ioga, terapia ou mesmo tomar sol também são atividades humanas essenciais que devem ser considerados como trabalho, pois beneficiam toda a sociedade ao trazer saúde para seus membros. Aprendemos na pandemia que a enfermidade de um pode refletir na saúde da coletividade.
 
Assim, a definição de trabalho deve mudar para toda forma de atividade humana que tenha valor social reconhecido. Isso não quer dizer que toda forma de trabalho deva ser remunerada direta e proporcionalmente a uma tarefa realizada, ou que todos os beneficiados pelo trabalho sejam considerados empregadores, mas sim que todo trabalho deve ser valorizado de algum jeito (na forma de serviços públicos, por exemplo) e todos aqueles beneficiados pelo trabalho alheio, seja de uma pessoa definida ou a partir da multidão, direta ou indiretamente, deverão contribuir para essa valorização, seja remunerando o trabalhador ou pagando impostos que serão revertidos a toda a sociedade, e que, por óbvio, alcançarão aqueles que realizaram o trabalho.
 
Essa segunda forma de remuneração, inclusive, é a mais adequada ao trabalho da multidão, em que microtarefas são distribuídas por toda a sociedade, como por exemplo em posts em redes sociais e mensagens de WhatsApp ou mecanismos como o Re-Captcha. O conceito de empregador deverá ser alterado também, para retornar ao simples e efetivo “empregar ou utilizar alguém em sua atividade econômica”, dando margem à figura do co-empregador ou co-empregadores quando um trabalho beneficiar toda uma cadeia produtiva, que será integralmente responsável pelos direitos daquele que trabalha. O fim é de distribuir melhor a riqueza criada pela sociedade e que hoje deixa de ser remunerada e é apropriada por algumas pessoas.
 
O Direito Ecológico do Trabalho funcionaria teria um tripé de atuação: regulação estrita do tempo de trabalho, garantia da renda mínima universal e defesa do meio ambiente do trabalho. Passemos a traçar algumas ideias para cada um destes tripés.
 
Regulação do tempo de trabalho
 
O Direito Ecológico do Trabalho será central na Social Ecologia porque é essencial não somente para a valorização de atividades até agora segregadas do mundo dos direitos, como vimos acima, mas também para a redução da produção e do consumo, ou seja, do trabalho como o concebemos hoje, que deve ser readequado ao novo paradigma.
 
Nós atualmente não só consumimos demais: nós trabalhamos demais. E isso é central para o impacto na nossa sociedade. Duas horas de trânsito para ir ao trabalho, duas horas para voltar, e jornadas de 12 horas são completamente devastadoras da vida na Terra, e não é só para o trabalhador que tem a vida colonizada, mas indiretamente todos os que sofrem com o cataclisma ecológico.
 
Além disso, hoje há uma invasão do tempo de trabalho remunerado sobre o tempo de vida completamente inaceitável, que ficou ainda mais claro durante a pandemia, em que os trabalhadores sonham em retornar aos escritórios das empresas para proteger seu tempo de viver. O tempo de trabalho deve ser reduzido para a proteção das pessoas, para que não se adoentem e ocupem os hospitais de maneira desnecessária e indesejada.
 
Economistas afirmam que o nível de emprego anterior não será alcançado no curto ou mesmo médio prazo, devido à necessidade de medidas futuras para contenção do vírus e a profundidade da crise econômica, só comparável à década de 1930. Assim, este é o momento para alterações tão profundas quanto as realizadas após esse período de crise no século passado.
 
E uma primeira providência é justamente afastar a desculpa que não há trabalho para todos. Inicialmente, como vimos, isso decorre da utilização de um conceito propositalmente restrito de trabalho, que elimina a valorização de uma série de atividades humanas, em sua maior parte realizada pelas mulheres. Assim, a eliminação do viés de gênero do conceito atual de trabalho, além dos demais vieses que impedem que outras atividades sejam reconhecidas como trabalho, de pronto aumentaríamos o trabalho existente.
 
A partir disso, partiríamos para sua distribuição. E como distribuir? Bem, uma das principais variáveis para o emprego é o tempo de trabalho. Quanto maior a jornada de trabalho realizada em um país, menos pessoas ocuparão  postos de trabalho. Ao inverso, quanto menor a jornada máxima de trabalho, mais pessoas estarão ocupadas. A carga horária semanal deve ser diminuída até um ponto ideal em que a população economicamente ativa possa estar em atividade. Por óbvio, nesse sistema, não são permitidas as horas extraordinárias ou suplementares.
 
Essa limitação estrita da jornada deve ser realizada em relação a todo trabalhador, e não em relação a um emprego. Assim, se um trabalhador prestar serviços a mais de um tomador, essas cargas horárias deverão ser somadas. Como o enfoque sai do emprego ou mesmo do posto de trabalho e passa para a pessoa que trabalha, sempre visando aos fins da Ecologia Social, não há outra possibilidade. Como dito acima, essa regulação será realizada para qualquer tipo de trabalhador, não fazendo mais qualquer sentido a qualificação de autônomo ou empregado. A pandemia nos mostrou que certos valores de segurança e saúde da sociedade prevalecem sobre o interesse individual.
 
Da mesma forma como uma pessoa não tem o direito de descumprir as normas de isolamento social e frequentar ambientes como a praia ou uma boate, alegando que assume o risco de se adoecer, os trabalhadores não têm o direito individual de ultrapassar a jornada de trabalho, para proteção da sua saúde e de todos, para a proteção ao meio-ambiente, além do interesse social na distribuição do trabalho. A liberdade de uma pessoa começa e garante sua efetividade na própria delimitação dos atos de todos.
 
Para o cumprimento dos objetivos do Direito Ecológico do Trabalho, a forma de remuneração por tarefa ou produção deve ser proibida, por se tratar de forma conhecida de ultra-exploração do trabalhador há mais de cento e cinquenta anos.
 
Desta forma, a regulação da jornada assume um caráter muito maior do que o atual, que tem objetivos muito restritos e se submete ao interesse particular e imediato do trabalhador e do empresário. A carga horária também não pode ficar a cargo da autorregulação coletiva, exceto para a obtenção de redução da carga de trabalho, tendo em vista especificidade dos representados. Outro ponto de ligação entre o Direito Coletivo de Trabalho e a Social Ecologia é que as organizações representativas da sociedade, inclusive os sindicatos, devem ser ampliadas e se voltarem para a multidisciplinaridade e a visão holística dos problemas para perceber todas as suas facetas.
 
Garantia da renda mínima universal
 
As cenas divulgadas na imprensa do patético desespero de empresários e mesmo de trabalhadores que pedem a reabertura das empresas no meio da pandemia, mesmo pondo em risco a vida e saúde de toda a população, são a prova cabal de falência do modelo.
 
As pessoas, por óbvio, não devem ter que escolher entre a sua sobrevivência material e o risco de morte por adoecimento, algo como escolher entre morrer de fome ou morrer de doença, à procura de qual seria o mal menor. Desta forma, deve ser estabelecido o direito de viver:  uma renda mínima universal permanente que garanta a vida das pessoas em todas as situações e etapas da vida, independentemente de contrapartida.
 
O objetivo é justamente impedir que pessoas sejam impelidas a aceitarem qualquer trabalho, em quaisquer condições, dando-lhe a possibilidade de real exercício da autonomia da vontade, e não o risível arremedo que temos hoje. Obviamente que essa renda mínima deverá ser independente dos serviços públicos básicos gratuitos, como saúde e educação, que deverão ser de fato universalizados. Somente com a renda universal seria possível ao mesmo tempo realizar o decrescimento e impedir que as pessoas concorram pelos postos de trabalho, aceitando salários de fome e jornadas de morte, ou seja, é a base e condição do próprio Direito Ecológico do Trabalho.
 
Defesa do meio ambiente do trabalho
 
O Direito Ecológico do Trabalho, como parte da Ecologia Social, vai entender o trabalho de forma holística, inserido nas relações amplas entre as pessoas e os demais elementos deste planeta. O trabalhador será respeitado como mais um elemento da Gaia, e visto como um elemento central por ser hoje a principal força geológica do planeta. Assim, o meio ambiente do trabalho deve integrar-se totalmente com o meio ambiente em geral. A saúde e a higiene do trabalhador devem ser guarnecidas dentro e fora do ambiente de trabalho, não podendo haver qualquer diferenciação.
 
Um descontrole no meio ambiente de trabalho causa necessariamente distúrbios no meio ambiente e vice-versa. Os princípios ambientais da precaução e da prevenção deverão ser levados a sério e terão prevalência sobre axiomas tais como o da inovação ou progresso. A vida, dentro e fora da fábrica (conceito inclusive completamente ultrapassado), é o bem jurídico máximo a ser preservado, sendo inalienável e inegociável. Adicionais de insalubridade e periculosidade, por serem facetas de mercantilização da saúde, serão substituídos por incentivos positivos e negativos de eliminação dos riscos.
 
A produção, como perdeu a sua função de crescimento, que foi substituída pela de preservação, terá como principal norte a proteção ao meio ambiente do trabalho, que conjugará a proteção aos trabalhadores aos demais seres habitantes deste planeta.
 
Conclusão
 
Por óbvio, o Direito Ecológico do Trabalho e a Social Ecologia são somente uma possibilidade, não havendo nenhum determinismo que imporá essas soluções. Outras escolhas podem ser realizadas pela sociedade, inclusive o aprofundamento do ultraliberalismo e a consequente extinção da espécie humana. Tudo é política, e toda política é escolha. Também é evidente que essas primeiras linhas são apenas ideias iniciais, que podem se mostrar impossíveis, ou até erradas, o que somente pode ser verificado após muita discussão.
 
A ideia é justamente esta: discutamos essa alternativa. Para alguns pode parecer que essas ideias sejam utópicas. Para esses, poderíamos trazer em auxílio Fernando Birri: “a utopia está no horizonte. Eu sei que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afastará dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos a encontrarei, porque ela vai se afastando à medida que me aproximo. Então para que serve a utopia? Serve justamente para isso: para caminhar.”
 
*Rodrigo de Lacerda Carelli – Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro e Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro