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Funis e gargalos

Fonte: Jota
 
A importância de não se publicizar a personalidade jurídica das empresas estatais do setor portuário
 
O Supremo Tribunal Federal (STF) deu um importante passo no tema da aplicabilidade de prerrogativas fazendárias a empresas estatais. O entendimento firmado pela maioria da Primeira Turma constituiu, sem qualquer contradição, um grande avanço para o setor portuário e para os compromissos regulatórios então firmados.
 
Em pauta, estava o agravo regimental no Recurso Extraordinário 892.727 ou, mais especificamente, a sujeição da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA) à sistemática dos precatórios. O recurso extraordinário havia sido provido monocraticamente por reiteração de jurisprudência. Coube o desempate ao ministro Luiz Fux, que concluiu, com imensa lucidez, que “beneficiar a APPA com uma prerrogativa não extensível ao setor privado pode prejudicar as autoridades portuárias de outros portos concorrentes, sobretudo aqueles cujas administrações tenham sido concedidas a agentes privados, como faculta a lei”.
 
De fato, havia farta jurisprudência alinhada à decisão recorrida, mas firmada em um outro contexto, quando a APPA ainda mantinha a natureza jurídica de autarquia que o governo do Paraná lhe atribuiu em 1947. Com a autorização conferida pela Lei 17.895, de 27 de dezembro de 2013, a autoridade portuária estadual foi transformada em empresa pública.
 
Não bastasse a personalidade jurídica de direito privado, a transformação dessa autoridade portuária em empresa estatal se insere em um arcabouço regulatório mais amplo, desenhado sob o propósito declarado de garantir maior segurança jurídica e, sobretudo, maior competição ao setor portuário1, sabidamente um gargalo muito sensível para o desenvolvimento nacional.
 
São essas as razões do acerto da decisão do Supremo, como se verá a seguir.
 
A opção de o poder público prestar um determinado serviço ou atividade por meio de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou órgão não é aleatória. Há um regime jurídico específico e um interesse público secundário inerentes a cada estratégia de atuação do Estado na economia.
 
Se, de um lado, as empresas estatais se aproximam do regime jurídico de direito público, devendo licitar, realizar concursos públicos, submeter-se ao controle externo dos órgãos fiscalizadores e respeitar os princípios da Administração Pública; de outro, o artigo 173, § 1º, II, da CRFB as submete ao regime jurídico próprio das empresas privadas, em que se incluem os direitos e obrigações civis, comerciais, tributárias e trabalhistas. Assim, como regra, seus empregados são celetistas, não há estabilidade, seus bens são privados, seus registros são comerciais, não gozam de imunidade tributária, nem se sujeitam ao precatório. Esse equilíbrio delicado entre ônus e bônus no regime jurídico de empresas estatais foi construído em prol do desempenho eficiente de uma atividade que o Estado preferiu prestar sob a forma empresarial.
 
A Lei 12.815, de 05 de junho de 2013, reconhecendo a importância estratégica do setor, erigiu um novo paradigma de participação da iniciativa privada com o Estado. A chamada Lei dos Portos admite que a administração dos portos organizados, que compete às autoridades portuárias, seja exercida não apenas por órgão, mas também por entidade sob controle estatal. Nos Portos de Paranaguá e de Antonina, a autoridade portuária sob controle estatal integra a Administração Pública indireta, mas pode haver casos em que uma concessionária integralmente privada assuma a administração do porto organizado. Ao se permitir a outorga à iniciativa privada, dissipa-se a instrumentalidade estatal que poderia ser atribuída à atividade. Entendimento diverso permitiria a extensão do privilégio do precatório a qualquer concessionária privada, hipótese evidentemente absurda.
 
Esse novo marco regulatório expressamente aponta o estímulo à concorrência e o incentivo à participação do setor privado como diretrizes a serem seguidas para maior eficiência no setor. A concorrência é alçada, então, a meio e fim da atividade portuária.
 
Conquanto a grande distância entre os portos e as especificidades de cada carga transportada dificultem a identificação de um mercado relevante ou a livre competição no setor, há de fato concorrência entre os portos. A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) reconheceu, por exemplo, a concorrência entre os portos de Paranaguá, São Francisco do Sul e Rio Grande.
 
A competitividade de cada porto deve considerar suas vantagens comparativas. No caso da autoridade portuária, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) listou dentre como vantagens a estrutura do porto, a atuação comercial da autoridade, seu marketing, as parcerias celebradas com o setor privado e, destaque-se, a interface da autoridade portuária com demais autoridades e sociedade2. A dilação dos prazos para pagamento de suas dívidas certamente desequilibra a competitividade do setor, podendo prejudicar outros portos concorrentes, como bem se identificou no voto de desempate. Essa vantagem competitiva, quando concedida por uma decisão judicial sem amparo constitucional, ofende a livre concorrência, que não tolera qualquer forma de distorção artificial da competição entre empreendedores em situação de igualdade3.
 
É sabido que, além da falta de competitividade, as poucas restrições orçamentárias e o apego a procedimentos burocráticos figuram entre os fantasmas da eficiência estatal4. A moratória de seus créditos, afora os permissivos constitucionais, poderia, em casos extremos, acarretar uma certa irresponsabilidade financeira da empresa estatal supostamente competitiva. Esse moral hazard se agrava ainda mais pela assimetria de informações entre o poder público, o delegatário e os agentes privados. A consequência seria aliar os prejuízos concorrenciais às perdas de eficiência, frustrando cabalmente as pretensões regulatórias.
 
A extensão judicial da sistemática de precatório aos credores da autoridade portuária corresponde a uma externalidade não prevista inicialmente pelo setor privado. Considerando que o arcabouço normativo integra o compromisso regulatório do setor portuário, sua violação pode frustrar as expectativas dos agentes econômicos envolvidos, o que inclui aqueles que ainda sequer celebraram contratos com a autoridade5. Isso possibilita reações adversas, como a fuga de investimentos privados ou contratações mais onerosas para a interface pública, que indiretamente oneram os usuários.
 
O precatório assegura a isonomia, a moralidade e o planejamento na utilização de recursos para pagamento dos débitos do setor público. É essa a ratio que orienta as hipóteses constitucionais e a que deve ser reconduzida a análise da extensão da benesse por decisão judicial. Ao editar a recente lei das estatais, o legislador delimitou as fronteiras entre o regime público e privado dessas empresas, oportunidade em que o precatório se manteve como prerrogativa exclusivamente fazendária.
 
Ainda que a dependência financeira de uma estatal possa justificar sua excepcional submissão ao regime de precatórios, a fim de evitar que se escoe por via indireta recursos do ente controlador, é razoável supor que as estatais são criadas para serem financeiramente sadias. A patologia não deve subverter o desenho institucional.
 
Em boa hora, o Supremo reconheceu que não se descaracteriza a personalidade jurídica de direito privado de uma empresa estatal por simples reiteração de jurisprudência. Por ser excepcional, impõe-se o redobrado ônus argumentativo de se avaliar, no caso concreto, as diversas balizas que fundamentam a instrumentalidade estatal, dentre as quais se incluem a exclusividade da prestação e a dependência financeira da estatal – ausentes na hipótese. É evidente que, se tais requisitos estiverem presentes em qualquer empresa estatal, poderá ser equiparada à Fazenda Pública para fins de submissão ao regime de precatórios, mas sob uma análise casuística, criteriosa e responsiva.
 
A responsabilidade da jurisdicional constitucional no caso, que não se confunde com a teoria das capacidades institucionais ou qualquer doutrina de contenção de ativismo judicial, mostra-se premente nos setores em que a concorrência e a eficiência assumem especial relevância. É precisamente o caso do setor portuário, inegavelmente estratégico dadas as dificuldades estruturais, burocráticas e econômicas que obstaculizam o desenvolvimento nacional, objetivo fundamental da nossa República.
 
Não à toa, o Custo, arcado por todos nós, é chamado Brasil.
 
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1 Exposição de Motivos Interministerial nº 12-A, de 03 de dezembro de 2012.
 
2 Voto do conselheiro Vinícius Marques de Carvalho no Ato de Concentração nº 08012.007025/2008-72.
 
3 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Forense, 2011. p. 206.
 
4 STIGLITZ. Joseph The Economics of the Public Sector. Nova Iorque: 1999. p. 205-209
 
5 COUTINHO, Diogo R. Direito e Economia Política na Regulação de Serviços Públicos. Saraiva: São Paulo, 2014. p. 91.
 

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