Artigos e Entrevistas

A mandioca da Dilma

Fonte: Correio do Brasil / José Ribamar Bessa Freire (*)
 
“Então, aqui, hoje, eu estou saudando a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil”.
 
A frase da presidente Dilma Rousseff, que discursou de improviso no lançamento dos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em Brasília, na terça-feira (23/06), provocou enxurradas de gozação na mídia e nas redes sociais. O colunista José Simão da Folha de SP, que tem liberdade para rir de Deus e do mundo, especialmente do poder – o que é saudável – reclamou que “Dilma saúda a mandioca, mas só fabrica pepino”. Para ele, a Mãe do PAC virou a Mãe Dioca.
 
Mas a frase virou também motivo de piadinhas obtusas de quem não tem liberdade para rir. É o caso do deputado da bancada ruralista, Nilson Aparecido Leitão (PSDB-MT), que criou tumulto no plenário da Câmara, na quinta-feira, quando entre outras coisas impublicáveis declarou na tribuna:
 
– “Dilma está enfiando uma mandioca na população do Brasil com o fim da desoneração da folha de pagamentos”.
 
– “Olha o baixo nível” – aparteou a deputada Jandira Feghali (PCdoB). No microfone, foi pedida a retirada das palavras de baixo calão dos registros oficiais. Chico Alencar (PSOL) concordou: “Nós criticamos esse governo desastroso, mas é preciso manter um patamar civilizatório para fazer críticas”. Nilson, que é muito mais leitão do que aparecido, descambou para ofensas e insultos com tom raivoso que contaminou a mídia e as redes sociais.
 
Farinha pouca
 
Pobre patriazinha tão pobrinha, como cantou o poetinha. Pobre país (des) governado por lambanceiros, cujos líderes despreparados são do naipe de Sibá Machado (PT-AC) e José Guimarães (PT-CE), que enfrentam uma oposição formada por leitões, aparecidos, aécios, caiados, agripinos, cunhas et caterva. Um lado não governa, o outro não sabe criticar nem cobrar, não consegue se articular como alternativa de poder. Afinal, o que foi que Dilma disse para fazerem tanta farofa com tão pouca farinha? Vejamos o contexto, que é o que dá significado ao que falamos.
 
Na cerimônia de abertura do evento, ocorreram danças rituais indígenas.  Dilma, depois de benzida por um pajé, discursou: “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação e aqui nós temos uma, como também os índios têm a deles”.
 
Foi aí que citou a mandioca, destacando os saberes dos índios na sua produção e “a capacidade de ter na natureza não aquela a quem se subjuga e explora, mas uma relação fraterna de quem sabe que é dessa relação que nasce nossa sobrevivência”.
 
– Dilma é a nefelibata da mandioca – berrou Reinaldo Azevedo em sua coluna do GLOBO. Com uma ignorância supina sobre o tema, arrotou seus preconceitos, querendo ser engraçado: “Um índio que estivesse com a cara cheia de cauim, a bebida de mandioca fermentada que deixava os índios doidões, não teria produzido nada melhor”.
 
Afinal, de quê e de quem estão rindo a oposição e seus escribas quando Dilma reconhece a mandioca como “uma das maiores conquistas do Brasil”? Embora eu preferisse que ela reconhecesse as terras indígenas, admito que no que ao aipim se refere, a presidente tem razão.
 
Aipim domesticado
 
Encharcado de leituras, dei em 1983 uma aula de História Indígena na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). O tema: a mandioca domesticada pelos índios por volta de 7.000 a.C. segundo o arqueólogo Donald Lathrap que fala em uma “civilização da mandioca”.  Durante milênios, através de experimentos genéticos, os índios diversificaram a espécie. Só na região do Uapés (AM), entre os Tukano, a antropóloga Janete Chernella (1986) identificou 137 cultivares diferentes, algumas ignoradas pelas universidades, diz o agrônomo Pieter Van der Veld.
 
Na aula, falei sobre os saberes relacionados à preservação, controle e técnicas de cultivo e extração do veneno da mandioca brava que vêm sendo transmitidos eficazmente pelos horticultores indígenas através da tradição oral. Informei que a mandioca, junto com o milho e o arroz, é uma grande fonte de carboidratos nos trópicos. Até ai, tudo bem. Mas quando comecei a descrever como se produzia a farinha, um aluno me interrompeu:
 
– Desculpa, professor, mas não é bem assim!
 
Respondi que minha aula se apoiava em livros – citei alguns – lidos durante o curso de doutorado na França e perguntei em qual bibliografia ele se baseava.
 
– Não é em livro não. Durante muitos anos, eu fabriquei farinha no Distrito de Pedras, município de Barreirinha, antes de vir pra Manaus  – ele disse.
 
Entreguei-lhe imediatamente o giz, trocamos de lugar e assisti uma senhora aula. No final, aplaudido pelos colegas, ele disse que em sua escolaridade tardia essa tinha sido a única vez em que sua experiência e os conhecimentos daí decorrentes foram valorizados. É que a escola ignora tais saberes e acaba formatando leitões, aparecidos e nefelibatas como Reinaldo Azevedo, que muito ganhariam se tivessem sido alfabetizados por dona Filoca, hoje nome do Posto de Saúde em Pedras.
 
Essa ignorância pode levar à morte como ocorreu em abril de 1985 com uma criança na bairro Vila Nova, na periferia de Porto Alegre, intoxicada com mais quinze pessoas por haverem comido mandioca furtada de uma horta. O então secretário de Saúde, Germano Bonow, informou que “todas as semanas há casos de intoxicação provocada pela ingestão de mandioca, por pessoas incapazes de distingui-la do aipim”.
 
Pensamento selvagem
 
Esse episódio evidencia a quebra de elos na cadeia de transmissão oral e revela como, em consequência, a sociedade brasileira deixou de se apropriar de um saber milenar, útil para a sua sobrevivência, sem que a escrita substituísse essas funções para amplos setores da sociedade nacional. Mas a pedagogia da oralidade continua funcionando no interior dassociedades indígenas.
 
Já a apropriação do saber indígena  pela atual sociedade brasileira tem sido obstaculizada pela ignorância, o despreparo e até mesmo o desprezo mantido em relação às línguas e cultura indígenas. O preconceito etnocêntrico não nos tem permitido usufruir desse legado cultural acumulado durante milênios e acabou intoxicando leitões e aparecidos.
 
Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem chama a atenção para o fato de que muitos erros teriam sido evitados se o colonizador tivesse confiado nas taxonomias indígenas em lugar de improvisar outras não tão adequadas. O riso boçal e raivoso é, portanto, fruto da ignorância que não ajuda a conhecer o país e a melhorar as condições de vida de quem nele vive. L.F. Veríssimo faz uma distinção entre, de um lado “um antipetismo justificável dado os desmandos do próprio PT” e de outro, “um ódio que ultrapassa a razão” e que “está no DNA  da classe dominante brasileira”.
 
Na tentativa de entender os leitões aparecidos que reproduzem no cenário político a metodologia discursiva do embate Adriana Esteves x Glória Pires na telenovela Babilônia, deixo duas questões para o leitor meditar:
 
1. A mídia e frequentadores das redes sociais que debocharam de Dilma, fariam o mesmo se Aécio Neves fosse o autor da apologia da mandioca? Tais críticos são livres para gozar as presepadas de Aécio Neves, construtor de aeroportos e fiscal do governo venezuelano?
 
2. A própria Dilma seria insultada se em discurso no congresso da Confederação Nacional da Agricultura, tendo ao lado sua ministra Kátia Abreu, substituísse a palavra mandioca por soja ou por trigo plantados pelo agronegócio, considerando-os como uma das maiores conquistas do Brasil?
 
Nas respostas dadas está a chave para entender porque os leitões não são capazes de cantar o carimbó do Pinduca, nem de preparar, sem se envenenar, uma maniçoba completa com folha de maniva, charque, toucinho, mocotó, costela, paio, chouriço, orelha e rabo de leitão.
 
P.S. – Referências bibliográficas
1. Agência O Estado de São Paulo: “Famílias famintas comem raiz mortal”. A CRÍTICA, Manaus, 26 de abril de 1985.
2. LATHRAP, Donald W.: “O Alto Amazonas”. Southampton: The Camelot Press Ltd. 1970. (Cap. III – “Cultura da Floresta Tropical”).
3. CHERNELLA, Janet M.: “Os cultivares de mandioca na área do Uaupés (Tukano)” in Suma Etnológica Brasileira. Edição atualizada do Handbook of South América Indians. Coordenação Berta G. Ribeiro. Vol. 1 – Etnobiologia, Petrópolis. Vozes. 1986. p. 151 a 158.
4. VAN DER VELD, Pieter. Bate-papo na Escola Tuyuka Utapinopona, depois da  oficina de formação de agentes agroflorestais indígenas ministrada por Renato Gavazzi que continuou na 1ª Oficina de História Tuyuka. Instituto Socioambiental. Aldeia Poani , Rio Tiquié 2004.
5. PEREIRA, Maria de Meneses.  ” Plantas tóxicas: determinação de cianeto em amostras de farinha de mandioca (Manihot esculenta Cranstz) produzidas e/ou comercializadas em Manaus, AM. Dissertação de Mestrado em Química. Universidade Federal do Amazonas. 1997, orientada pelo dr. João Ferreira Galvão.



(*) José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. 
 

Imprimir Indicar Comentar

Comentários (0)

Compartilhe