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Os portos, a incerteza jurídica e a concorrência

Fonte: Valor Econômico / Eduardo Augusto Guimarães (*)
 
 
Em meados da década passada, o crescente interesse de investidores nacionais e estrangeiros pelas oportunidades de empreendimentos em infraestrutura no Brasil se traduziu em um conjunto de projetos de investimento em terminais privativos, voltados sobretudo à movimentação de contêineres. Essa onda de investimento foi afetada pela incerteza jurídica gerada por uma decisão da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e por ação judicial iniciada pelos terminais de contêineres de uso público junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Essas iniciativas, se contrapondo a entendimento da Lei dos Portos vigente desde sua aprovação, visavam condicionar a instalação de terminal de uso privativo a compromisso com movimentação de volume mínimo de carga própria, que de resto justificasse por si só a sua implantação, limitando-os a movimentar apenas eventual e subsidiariamente carga de terceiros. Em 2008, decreto presidencial recepcionou essas teses, criando clara barreira à instalação de novos terminais privativos, restringindo o investimento privado na expansão do sistema portuário e limitando a concorrência entre terminais. O decreto resultou no abandono definitivo dos projetos de investimentos em gestação.
 
Não existe uma razão para limitar a movimentação de carga própria dos chamados terminais indústria
 
A Medida Provisória (MP) 595 teve, entre outros, o mérito de remover essa restrição à concorrência e à expansão da infraestrutura portuária do país, para tanto eliminando de seu texto qualquer referência a cargas própria e de terceiros e, por conseguinte, a distinção entre terminais exclusivos e mistos. Da mesma forma, procurou eliminar dispositivos e conceitos da Lei dos Portos cuja ambiguidade ou falta de definição pudessem dar origem a interpretações controversas, gerando insegurança jurídica.
 
O texto do relatório aprovado pela Comissão Mista que analisa a MP vem contrariar essa intenção do Executivo expressa na Medida Provisória ao recuperar, e de forma nem mesmo sutil, os mesmos conceitos de carga própria x carga de terceiros e terminal exclusivo x terminal misto, utilizados na Lei dos Portos, que serviram de base à controvérsia da década passada.
 
O terminal exclusivo da Lei dos Portos reaparece como terminal indústria, limitado "à movimentação exclusiva de cargas pertencentes ao autorizado". Em contraposição, o terminal de uso privado, previsto na MP 595, fica implicitamente caracterizado como aquele que movimenta cargas pertencentes ao autorizado e cargas de terceiros, correspondendo, portanto, no texto do relator, ao terminal misto da Lei dos Portos.
 
A autorização de um terminal de uso privado poderá decorrer de pleito de interessado seguida de anúncio público e processo seletivo, previsto na MP, ou de chamada pública do poder concedente, alternativa introduzida no projeto do relator. O projeto introduz ainda regras relativas ao processo de seleção que estavam ausentes da MP. Uma dessas regras estabelece que as autorizações podem ser concedidas diretamente, dispensando a realização de uma seleção, "quando o processo de chamada ou anúncio público seja concluído com a participação de um único interessado" ou, "havendo mais de uma proposta, não haja impedimento locacional à implantação de todas elas de maneira concomitante". Importante assinalar que o projeto não indica o que caracteriza o impedimento locacional a que se refere.
 
O terminal indústria goza de certa vantagem em relação ao terminal de uso privado, uma vez que, no seu caso, a outorga da autorização dispensa o processo de anúncio público e seleção. Contudo, a dispensa será concedida "desde que não haja interferência nas operações de instalações portuárias em áreas de portos organizados próximas". Importante assinalar, novamente, que o projeto não indica o que caracteriza a interferência a que se refere. No texto do projeto, a interferência apenas impede a dispensa do procedimento de seleção. No entanto, não é evidente qual a razão de um impedimento limitado à dispensa de seleção e não há como escapar à possível interpretação de que a interferência seria impeditiva da instalação do terminal com ou sem seleção - o que corresponderia a uma restrição ao terminal indústria que a Antaq e o decreto presidencial não impunham a seu antecessor na Lei dos Portos.
 
Os pontos destacados são assim passíveis de interpretações que implicam obstáculos à entrada de novos concorrentes no mercado. Tal receio se justifica inclusive porque esses pontos aparecem no contexto de dispositivos que são, em si, contrários à concorrência. De fato, não há outra razão para submeter a autorização de um terminal privado construído em terreno do próprio autorizatário a processo de seleção (um dos poucos equívocos da MP 595) a não ser a intenção de administrar o número de concorrentes no mercado. Tampouco existe razão para limitar os chamados terminais indústria à movimentação de carga própria que não seja impedi-lo de ser um concorrente no mercado. Igualmente injustificada é a restrição absoluta, introduzida pelo projeto do relator, à entrada no sistema portuário do país de empresas com participação societária de empresas de navegação superiores a 5% - restrição que elimina investidores potenciais em sistema que necessita de expansão imediata e, como toda barreira à entrada, afeta negativamente a concorrência no setor.
 
Mas não só as restrições explícitas ameaçam a expansão do sistema portuário e a concorrência do setor. Os episódios do passado recente sugerem que a insegurança jurídica provocada a partir de textos legais ambíguos ou de conceitos mal definidos afugentam o investidor, afetando a expansão do setor e constituindo assim barreira à entrada que favorece as empresas incumbentes em detrimento da concorrência e dos usuários.




(*) Eduardo Augusto Guimarães, economista com PhD pela Universidade de Londres, foi secretário do Tesouro Nacional e presidente do IBGE



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