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Medida Provisória dos Portos é inconstitucional, avalia especialista em transporte

Fonte: AssCom FNP



Razão de uma paralisação nacional dos portuários no dia 22 de fevereiro, a Medida Provisória 595/12 é inconstitucional por autorizar a prestação de serviço público valendo-se de autorização de instalação, sem licitação. Esse é o argumento que defende o diretor Executivo da Agência T1 e especialista em transporte e logística, José Augusto Valente.
 
Em entrevista abaixo, Valente avalia como eficiente o modelo portuário brasileiro até a publicação da MP e afirma que, aprovada como está, a norma enfraquecerá o porto público, estabelecerá concorrência desigual entre terminais de uso público e terminais privados e vai precarizar as relações de trabalho, acarretando em desemprego para os portuários.
 
FNP: Como o senhor avalia o modelo de operação e administração dos portos até a publicação da MP595/12?
 
Valente: Os números comprovam que esse modelo, utilizado no mundo todo, estava dando certo. O comércio exterior brasileiro cresceu quase cinco vezes – entre 2002 e 2011 –, saindo de US$ 100 bilhões para US$ 480. Entre 2009 e 2011, o comércio exterior do Brasil cresceu mais que o da China, Índia, Rússia, Alemanha, Estados Unidos. Um sistema portuário ineficiente não permitiria tal crescimento, já que os portos são responsáveis por mais de 95% do comércio exterior brasileiro. Ao contrário do que dizem aqueles que querem o fim do porto público, não há filas de caminhões, nem de navios, exceto quando há quebra de safras em outros países exportadores de soja ou açúcar, sobrecarregando a infraestrutura portuária – e logística, em geral – para esses produtos.
 
FNP: O que precisa ser melhorado?
 
Valente: Apesar de o sistema portuário atender as necessidades do comércio exterior brasileiro, temos ainda, alguns problemas que precisam ser resolvidos, para reduzir custos e tempos para os usuários e atender ao crescimento constante da nossa economia e do comércio exterior. Os problemas básicos são: acessos aos portos, ainda muito deficientes; trâmites burocráticos, que oneram os usuários e operadores portuários; elevados preços cobrados pelos donos de navios aos exportadores/importadores, seja na operação do terminal portuário, seja no frete marítimo; insuficiente gestão profissional nas direções das companhias Docas, devido a indicações partidárias. A MP-595, entretanto, não ataca esses pontos. Ela ataca apenas os trabalhadores e os operadores privados dos portos públicos, como se estes tivessem responsabilidade pelos verdadeiros problemas existentes.
 
FNP: Quais a mudanças na navegação de longo curso que geraram novos problemas a serem equacionados nos portos brasileiros?
 
Valente: Em 1993, quando foi criada a Lei 8.630, lei dos portos revogada pela MP-595, os navios brasileiros transportavam 1,5 mil contêineres. Até 2011, os maiores navios que atracavam nos portos brasileiros transportavam entre 3 mil e 5 mil contêineres. Em 2012, começaram a chegar navios com 8 mil contêineres e a tendência é aumentar. Essa evolução demanda mudanças estruturais.  Os navios maiores e mais largos, também afundam mais, então exigem maior calado [profundidade], maiores comprimentos de berço, bem como guindastes [portêiners] cada vez maiores e mais velozes. Nos últimos cinco anos, foram necessários investimentos pesados pelos operadores privados, para adequar e oferecer estrutura necessária nos portos públicos. O governo federal investiu em dragagem para aumentar os calados. Então, os portos brasileiros vêm se modernizando e atuam com equipamentos de última geração. Estava em andamento um projeto de expansão no setor que pode ser afetado pelas indefinições e equívocos da nova regulamentação.
 
FNP: Com a Medida Provisória 595/12, quais são as principais diferenças na regulação do setor portuário?
 
Valente: As grandes mudanças, negativas, são: a) permitir que os terminais de uso privado movimentem cargas de terceiros, ou seja, prestem serviços públicos sem licitação, o que é inconstitucional e b) Retirar direitos dos trabalhadores portuários. A Constituição Federal [Art.21 e 175] determina que a prestação de serviço público (movimentação de cargas de terceiros) é atribuição da União, podendo ser concedida a estados, municípios ou a iniciativa privada, exclusivamente por meio de licitação. A Lei 8630/93 distinguia dois tipos de terminais o de uso público e o de uso privativo, sendo que este último tinha como finalidade o transporte de carga própria. Assim, empresas como Petrobrás, Vale, Cargill poderiam escoar sua produção, sem depender do porto público. A MP-595 cria a figura do Terminal de Uso Privado (TUP), fora do porto organizado, com autorização para prestar serviço público, sem licitação, em claro confronto com o que diz a Constituição Federal. Além disso, vários direitos dos trabalhadores foram retirados, bem como a garantia dos empregos nos portos públicos, no futuro.
 
FNP: O que foi que levou o governo Dilma a mudar a legislação portuária, de forma tão radical, considerando que ela atendia às necessidades do país?
 
Valente: Só há uma explicação: a presidenta Dilma foi induzida a um grave erro de diagnóstico. Falsos problemas foram indicados para ela como aqueles que teriam que ser equacionados. É bom lembrar que os assessores da presidenta não visitaram os principais portos brasileiros, para constatar como são modernos, eficientes, com trabalhadores comprometidos com sua missão e, dessa forma, respaldam o vigoroso crescimento do nosso comércio exterior. Também, contribuíram para esse diagnóstico equivocado, os interesses dos armadores e de grandes operadores internacionais, que tentam a todo custo – no resto do mundo sem sucesso – verticalizar sua cadeia logística, se apropriando dos principais sítios portuários, para maximização dos seus lucros.
 
FNP: Há exemplos no Brasil dessa tentativa de se apropriar da estrutura portuária?
 
Valente: O surgimento do terminal de uso privativo misto, a partir da flexibilização da Lei 8.630/93, permitindo a movimentação de carga de terceiros para aproveitar a ociosidade da estrutura que não era totalmente ocupada pela carga própria. Com isso houve a possibilidade de desvirtuamento da finalidade desses terminais, pois não existiam regras que limitassem a quantidade de carga de terceiros para obter a respectiva autorização. Então, alguns desses terminais passaram a prestar serviço público se valendo de uma simples autorização. Três casos são notórios: o terminal da Embraport em Santos, Portonave em Itajaí (SC) e o terminal de Itapoá (SC). Em 2009, a Federação Nacional dos Portuários processou a Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq) no Tribunal de Contas da União (TCU) por liberar a operação desses terminais. Essa possibilidade de terminal de uso privado funcionando fora do porto organizado, podendo operar qualquer carga como determina a MP, provoca uma competição desigual com os terminais dentro do porto organizado.
 
FNP: Quais são as conseqüências dessa competição desigual entre o porto público e os terminais privados, para o trabalhador portuário?
 
Valente: De um lado, teremos os operadores nos portos públicos, com uma série de restrições e encargos provenientes dos processos licitatórios e regras da Antaq e com necessidade de ganhos de escala para reduzir custos e tarifas cobradas dos armadores; do outro lado, os terminais privados, sem restrições, com baixos encargos e poucas obrigações. É óbvio que os terminais públicos perderão carga para o terminal privado e, dessa maneira, o porto público vai definhar, gerando precarização nas relações de trabalho, desemprego para os portuários avulsos, pois enquanto, os terminais públicos devem contratar trabalhadores registrados ou cadastrados no Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO), os terminais privados não serão obrigados a cumprir essa norma, contrariando a Convenção 137 da OIT da qual o Brasil é signatário.
 
FNP: Qual sua opinião sobre a omissão no texto da MP da guarda portuária?
 
Valente: Vemos na MP uma série de determinações que enfraquecem os portos públicos e podem acarretar prejuízos para os trabalhadores, como por exemplo, a omissão no texto da guarda portuária que pode abrir uma brecha para terceirização, por meio da contratação de empresas de segurança, o que é ilegal, pois a guarda portuária exerce poder de polícia, logo não pode ser terceirizada.
 
FNP: Quando o governo federal iniciou as discussões sobre o novo marco regulatório para os portos, havia um debate sobre a necessidade de investimentos em gestão. No entanto, com o novo modelo em vez de investir nas empresas gestoras dos portos, as autoridades portuárias tiveram suas funções esvaziadas. Como o senhor avalia esse fato?
 
Valente: O mais óbvio era que o governo optasse pela gestão local, como existe nos países desenvolvidos e aqui, até a publicação da MP-595. O porto é um ponto que reúne chegada de navios, caminhões com contêineres, trens e interfere no movimento urbano ao redor. Ou seja, causa uma série de reflexos econômicos e sociais na comunidade onde está instalado.  Por isso, a gestão deve ser regionalizada, com participação social por meio do Conselho de Autoridade Portuária (CAP) que deve ser deliberativo. O CAP é instrumento de controle da sociedade, por meio da participação de prefeituras, governos dos estados, trabalhadores e empresários.  É provável que devido à quantidade de terminais e portos marítimos fluviais a Secretaria de Portos (SEP) não tenha estrutura para alocar todas essas demandas. Faltaram ainda ações concretas para reestruturar as companhias Docas, essas empresas herdaram da extinta Portobrás passivos operacionais e trabalhistas que impedem uma gestão eficiente. Se não bastasse, a centralização da gestão dos portos públicos e o esvaziamento das funções retiram receitas das Docas, consequentemente, essas empresas terão diminuída a capacidade de investimento.
 
FNP: A nova legislação tentar fazer uma abertura do setor portuário à iniciativa privada com a justificativa de atrair recursos. A nova legislação vai alavancar os investimentos?
 
Valente: Não há um clima de segurança para o investimento. O governo mudou todo o marco regulatório, inclusive fez diferente do que é no mundo todo. Se eu fosse investidor, me perguntaria: quem garante que não mudará tudo novamente, no meio dos contratos? Isso aponta para um grande risco futuro.
 
FNP: Então, qual a alternativa para o governo destravar investimentos na área portuária?
 
Valente: Seria suficiente que a Antaq renovasse os contratos de concessão e arrendamentos existentes com compromisso de investimento, onde possa ser renovado. Além de fazer licitações para novos terminais dentro do que a Constituição determina para a prestação de serviço público com levantamento das áreas que justifiquem a implantação de um terminal.
 



 
José Augusto Valente é engenheiro e atua na área de transportes há 40 anos. Foi presidente do Departamento de Estradas de Rodagem do Rio de Janeiro (DER-RJ) em 2002. No mesmo ano, coordenou a área de transportes da equipe de transição do primeiro mandato do governo Lula. Entre 2004 e 2007 foi secretário de Política Nacional de Transportes do Ministério dos Transportes. Atualmente, é consultor e diretor técnico da Agência T1 e TVT1, especializado em Transporte e Logística.  
 

 


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