Artigos e Entrevistas

Uma ponte histórica

Sílvio Ribas (*)



Quase quatro décadas depois, as reações da equipe econômica do governo Dilma à crise mundial se aproximam das do ex-presidente Ernesto Geisel. Entre as características comuns estão o intervencionismo estatal e a tolerância com a alta dos preços
 
A forma como reagiram aos sinais ruins da economia aproximou dois presidentes do Brasil de biografias e de contextos históricos muito diferentes. Esses líderes de sobrenomes incomuns são famosos pela personalidade austera, mas também pela absoluta confiança no papel do Estado como condutor do desenvolvimento e pela tolerância com a disparada da inflação. Separados por quatro longas décadas nas quais a democracia voltou e se consolidou, o general Ernesto Geisel (1974-1979) e a economista Dilma Rousseff (2011-2014), nos seus respectivos mandatos, colocaram em marcha medidas parecidas para manter o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no nível herdado pelo governo anterior.
 
Geisel e Dilma apostaram no intervencionismo estatal, e a principal vítima de suas posturas foi a confiança (veja quadro). Receosos com políticas que atropelam as regras de jogo e reduzem a rentabilidade dos seus empreendimentos, os empresários preferiram manter o freio de mão levantado. No caso da atual chefe do Executivo, as medidas para enquadrar setores poderosos — como o bancário, o elétrico e o de telecomunicações — e as previsões equivocadas ampliaram incertezas sobre os negócios e sobre a própria economia. O reflexo disso foi a queda expressiva nos investimentos diretos em 2012.
 
Tanto o ministro da Fazenda, Guido Mantega, quanto o presidente do Banco Central (BC), Alexandre Tombini, preferem argumentar que as decepções com o PIB decorrem da radical transição para um novo ambiente econômico. Eles listam entre as mudanças estruturais implementadas a derrubada da taxa básica de juros (Selic), que em um ano e meio caiu de 12,5% para 7,25%, e a valorização do dólar, que saiu do patamar de R$ 1,70 em março para o atual, em torno de R$ 2.
 
Para piorar, o governo Dilma avançou em suas manobras para melhorar artificialmente o retrato fiscal. Além de recorrentes antecipações dos dividendos de estatais e das transferências diretas do Tesouro ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDES), foi agregado recentemente o artifício de resgatar recursos do Fundo Soberano.
 
Mantega
 
Curiosamente, no artigo "O governo Geisel, o 2º PND e os economistas", escrito por Mantega em 1997, o agora ministro elogia o período Geisel e critica a resistência em estudá-lo. "O 2º PND foi, provavelmente, o mais amplo programa de intervenção estatal de que se tem notícia no país, e que transformou significativamente o parque industrial brasileiro com a implantação de um polo de insumos básicos e de bens de capital." Segundo ele, a equipe econômica do general arquitetou um plano de desenvolvimento "extremamente ambicioso, que contrariava as expectativas de analistas, para enfrentar o primeiro choque de petróleo e a crise internacional".
 
Exemplos de conexões entre Geisel e Dilma não faltam. Luís Eduardo Assis, economista e ex-diretor do BC, afirma que essas semelhanças não surpreendem, pois vários especialistas que influenciam o governo atual cultivam uma imagem favorável em relação ao 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), sempre comparado ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
 
Para ele, a principal consequência do ardor intervencionista é visível a olho nu: queda continuada no ritmo de investimentos, já que o governo não consegue imprimir sozinho o passo adequado e as mudanças frenéticas na política econômica acabam inibindo a iniciativa privada. Apesar dos insistentes pedidos da presidente para que empresários libertassem seu espírito animal, eles estão retraídos.
 
"A diferença está nas circunstâncias. Em um regime democrático, sobretudo no nosso presidencialismo de coalizão, fica impossível o governo ter a mesma capacidade de intervenção da ditadura", ressalta. Com forças tão heterogêneas na base parlamentar do governo (19 partidos, com múltiplas e diferentes coalizões estaduais), o espaço de manobra para uma ação voluntariosa como foi o 2º PND é muito limitado.
 
Para Rodrigo Constantino, economista do Instituto Millenium, esse arranjo leva a "medidas erráticas" visando contornar problemas que acabam por criar mais distorções. Essas, por sua vez, são atacadas com improvisos.
 
Perda do foco
 
O ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega considera como o maior dano da retomada intervencionista os abalos nos chamados pilares da estabilidade econômica, construídos no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB): regime cambial flutuante, cumprimento da meta de superavit primário e BC independente, pautado por metas de inflação. "A autoridade monetária se tornou tolerante à alta dos índices inflacionários, e o controle de preços da gasolina, que fragiliza a Petrobras e os produtores de etanol, voltou à cena", ilustra.
 
Maílson contabiliza como resultado líquido do avanço de medidas que começam no auge da crise internacional, em 2009, uma perda do foco na produtividade da economia e uma queda no potencial de crescimento. "Nenhuma grande reforma estrutural foi feita nos últimos 10 anos, e o intervencionismo excessivo criou incertezas que inibem o investimento", diz. Com isso, a expansão do PIB em 2012 pode ficar abaixo de 1%, acumulando dois anos com pibinhos, e as previsões otimistas do ministro da Fazenda para 2013, em torno de 4%, não devem se confirmar.
 
Renato Fragelli, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ), aponta o papel do Estado na economia como o ponto central na ligação entre Dilma e Geisel. A presidente continuou o fortalecimento de estatais da era Lula, criando a Infraero Serviços e a Empresa de Planejamento e Logística (EPL) e dando mais poder à construtora e gestora de ferrovias Valec. "Além disso, ambos os presidentes acreditam na proteção sem limites como forma de estimular a indústria", sublinha.
 
No caso da infraestrutura, ele teme, por exemplo, que o trem de alta velocidade (TAV) entre Rio de Janeiro e São Paulo, principal projeto do PAC2, tenha história igual à da Ferrovia do Aço, "notório fracasso da megalomania de Geisel".



 

(*) Sílvio Ribas
Jornalista e escritor

 


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