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Nem trabalho, nem auxílio emergencial: os “nem-nem” do coronavírus

Fonte: CNN
 
A pandemia de coronavírus atingiu em cheio todas as fontes de renda da atriz paulistana Livia La Gatto, 34. Peças, eventos, publicidades, séries e filmes foram abortados em massa – “tudo o que a gente faz envolve aglomeração; os contratos que eu tinha foram cancelados”, diz. 
 
Com isso, a renda despencou a praticamente zero, tendo da mesma maneira que cobrir o aluguel, as contas da casa, a comida e a ajuda que dá aos pais – o pai de Livia é motorista, e está afastado, e sua mãe tem uma doença degenerativa e recebe uma aposentadoria por invalidez do governo. 
 
O auxílio emergencial de R$ 600 elaborado pelo governo não daria conta de tudo, mas seria uma ajuda. O problema é que Livia não se encaixa nele. O que costumava receber antes da crise ultrapassa os limites estipulados. 
 
O benefício é voltado para autônomos e informais – caso da atriz, que não tem contrato fixo de emprego. Mas o recorte de renda para recebe-lo é de R$ 3.135 por família (três salários mínimos) ou de até meio salário mínimo (R$ 522,50) por cada pessoa da casa, por mês. “Minha renda é muito inconstante, tem mês que ganho mais que isso, e mês que ganho zero”, diz Livia. 
 
Além disso, o inscrito também não pode ter ganhado mais do que R$ 28.559,70 em rendimentos tributáveis em 2018 – foi esse o recorte de isenção da declaração do Imposto de Renda daquele ano. Como a declaração do IR 2019/2020 ainda não está fechada, o governo usou o piso do ano anterior. “Em 2018 devo ter ganhado um pouco mais que isso, mas em 2020 certamente será menos”, afirma Livia. 
 
A medida de meio salário mínimo – os R$ 522,50 por pessoa por mês – é um dos recortes de referência para estipular o começo das linhas da pobreza no Brasil. Dessa maneira, os parâmetros do programa de R$ 600 cobrem com folga essa parte mais pobre e mais fragilizada da população, e que não é pequena. É um batalhão de pessoas que ganham pouco mais ou pouco menos do que um um salário mínimo (R$ 1.045 em 2020) para sustentar a família inteira. Só o Cadastro Único, porta de entrada para receber o Bolsa Família, tem 48 milhões de registrados.
 
A renda mensal máxima para receber o Bolsa Família é de até R$ 178 por pessoa da casa, e o benefício varia de R$ 41 a R$ 205. A renda média mensal do trabalhador brasileiro é de R$ 2.400, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
 
Todos que estão deste ponto para cima começam a cair em uma zona cinzenta criada pela pandemia. Elas compõem uma espécie de nova categoria de “nem-nem” dos brasileiros: são profissionais que não conseguiram manter seu trabalho e sua renda, mas que também não se encaixam nos critérios dos auxílios anti-crise criados pelo governo. 
 
Como a grande maioria das classes mais baixas, eles também trabalham por conta própria – são autônomos, informais, donos de pequenos negócios e pessoas que vivem de serviços e bicos. Mas costumavam ganhar mais do que o foco dado dentro do auxílio de R$ 600, que foi direto para a base da pirâmide. 
 
Sem contrato formal de emprego, os “nem-nem” do coronavírus também ficam de fora da seguridade que já ampara os registrados, como seguro-desemprego, multa e FGTS em caso de demissão. Para estes, foi criada ainda a possibilidade de redução temporária de jornada e de salário com um complemento a ser pago pelo governo.
 
Já os que são empreendedores têm negócios muito pequenos para serem beneficiados pelos programas pensados para as empresas, que incluem linhas especiais de capital de giro e a possibilidade do acordo de dispensa dos funcionários. 
 
“É difícil mensurar quem fica desprotegido”, diz Luis Henrique Paiva, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Eles trabalham por conta própria ou no máximo têm um pequeno comércio com um empregado. Não têm uma renda que os colocaria no Cadastro Único ou no Bolsa Família, mas essa renda, provavelmente, despencou.”
 
É o caso de Leandro Martins, dono de uma loja de tapeçarias na Lapa, zona oeste de São Paulo. “O faturamento era de R$ 50 mil, hoje não chega a R$ 5.000”, diz. Os dois funcionários que tem tiveram a jornada reduzida em 50% – “mas não é isso que ajuda; se continuar como está, não tem nem como ficar aberto”. 
 
A renda de Leandro e da esposa, dona de um bar ao lado, era próxima dos R$ 4.000; agora, bem menos. O aluguel de abril da tapeçaria já não foi pago e a conta de luz da casa foi pulada. Mas Leandro nem tentou pedir o auxílio de R$ 600: “Eu sou ME [microempresa], e o auxílio é só para quem é MEI [microempreendedor individual].” 
 
Tem sido este o principal drama de uma boa parte dos donos de pequenos comércios, muitos deles registrados como microempresa. Para esses estabelecimentos, mesmo que pequenos, o limite de renda do registro por MEI – de até R$ 81 mil por ano – é muito baixo para manter a operação toda. O regisro de ME tolera receitas maiores. Mas eles também acabaram não contemplados nas regras do auxílio. 
 
Podem pedir o benefício emergencial desempregados, profissionais registrados como MEI e contribuintes individuais ou facultativos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), além de informais registrados no Cadastro Único (CadÚnico). Quem é registrado ou já recebe algum outro auxílio do governo (como INSS ou seguro-desemprego), à exceção do Bolsa Família, não é elegível.  
 
A classe C ficou de fora
 
“Os critérios de elegibilidade do programa deixaram a classe C praticamente inteira de fora”, diz o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, centro de pesquisas em políticas públicas da Fundação Getulio Vargas. 
 
“Ela é de fato menos frágil que as classes D e E e, em situações normais, está menos assistida pelos programas sociais, que combatem a extrema pobreza. Mas, com essa crise, criou-se este vácuo: as medidas criadas olham bastante para os mais pobres, o pessoal lá de cima tem mais acesso a emprego formal e mais condições de poupar, e ficou esse grupo no meio, que acaba não sendo nem uma coisa e nem outra.”
 
Dois fatores, menciona Neri, agravam ainda mais a situação: esse “grupo do meio” é enorme e também está repleto de autônomos, resultado do fenômeno da informalidade que avançou sobre o mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos. 
 
O FGV Social estima que a classe C seja hoje formada por 114,9 milhões de brasileiros, mais da metade da população do país. Não há um recorte oficial para as classes no Brasil, mas os parâmetros do FGV Social, uma das principais referências, coloca na classe C todos aqueles que vivem com uma renda que vai de R$ 1.892 até R$ 8.159, considerada a renda per capita da família. 
 
Abaixo disso estão as classes D e E, com 63 milhões de pessoas, e, acima, as classes A e B, com 30 milhões. “Se o recorte para receber o auxílio de R$ 600 é de até 3 salários mínimos [R$ 3.135], ele pega o começo da classe C”, diz Neri.
 
“Em análise”
 
Estimar o tamanho deste grupo que ficará tanto sem trabalho quanto sem ajudas não é fácil. Neri dá algumas dicas: em 2018, dados mais recentes do IBGE sobre a população brasileira, o Brasil tinha 42 milhões de pessoas trabalhando por conta própria ou sem carteira assinada. 
 
Dessas, cerca de 10 milhões viviam na pobreza e estavam na linha mais baixa do auxílio de R$ 600, de meio salário mínimo por mês (R$ 522,50). Todos os 32 milhões restantes ficam expostos à dúvida – que, na prática, é fazer o cadastro nos aplicativos disponibilizados para pedir o auxílio emergencial e aguardar para ver se é aprovado ou não. 
 
A atriz Livia, por exemplo, está há uma semana esperando uma resposta de seu pedido, que segue “em análise”. Leandro, o dono da tapeçaria na Lapa, não tentou, mas tem vizinhos comerciantes na mesma situação, que também tinham receita maior do que a de um MEI, e que arriscaram o pedido – alguns foram aprovados, outros também seguem “em análise”. Há ainda os que receberam a permissão mas não estão conseguindo fazer o saque, que deve ser ativado pelo aplicativo específico do programa, o Caixa TEM, e que tem apresentado intermitências.
 
Até a quinta-feira, dia 30, o Dataprev, sistema de dados do governo, informou ter recebido um total de 97 milhões de pedido para o auxílio de R$ 600. Destes, 50,5 milhões foram aprovados, de acordo com o órgão. Outros 32,8 milhões foram negados e 13,7 milhões estavam classificados como inconclusivos, por cadastro incompleto ou necessidade de documentos complementares.
 

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