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Coronavírus e a questão racial

Fonte: IstoÉ Dinheiro / Mauricio Pestana*
 
Procuro sempre achar algo de positivo, mesmo diante das piores situações. Acredito que as crises sempre deixam um legado, seja no aprendizado, seja nas reflexões e até mesmo nas perdas. É momento de pensar que tudo é um ciclo e que esta incrível criação chamada Raça Humana só consegue encontrar soluções diante das crises, das perdas e outras catástrofes que fizeram e fazem parte da nossa história.
 
Neste início de século – no qual diferenças étnicas, de gênero, regionais, continentais e religiosas parecem fazer muita diferença; em que ser de direita ou de esquerda, ser preto ou branco, homossexual ou hétero pode determinar o nível de violência a sofrer; em que morar no primeiro, segundo ou terceiro mundo, na favela ou no condomínio fechado com toda “segurança” é determinante para você ser respeitado como ser humano –, eis que surge o novo coronavírus para confrontar essa nova ordem mundial.
 
O Covid-19 não faz distinção entre negro e branco, pobre e rico, homem e mulher, hétero e homossexual, letrado e analfabeto, esquerda e direita. Ele surge exatamente para mostrar o quanto somos humanos, frágeis, vulneráveis a um simples vírus em pleno século 21.
 
Ainda é cedo para saber quais lições este vírus deixará para nossa história civilizatória. Sob o ponto de vista econômico está sendo catastrófico, vide as bolsas de valores mundo afora. Não restam dúvidas de que economias “sólidas” sairão em ruínas depois da pandemia. Setores como a cultura, o entretenimento, o comércio e até mesmo o esporte, campo de oportunidades, em que o talento e a arte são determinantes, vão sofrer drasticamente.
 
E a questão racial, a exclusão, as discriminações e desigualdades criadas por outro vírus mortal que há séculos circula entre nós – o vírus do racismo e seus malefícios como a ignorância, o descaso, a alienação e a violência – como ficam em tempos de coronavírus?
 
O cruzamento desses dois vírus para a humanidade causará morte, destruição e uma desorganização social em uma escala jamais vista para a população negra de forma global, regional e local. De forma global, por pior que tenha sido o impacto em países como a Itália, Espanha, França, até mesmo a China e os Estados Unidos, imagine a forma devastadora em países da África, em que o problema não é a falta de álcool gel e sabão, e sim, água e comida?
 
Ainda na questão global, as campanhas mundo afora, inclusive as amplamente divulgadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), relatam incisivamente os principais “grupos de risco”: hipertensos, diabéticos, pacientes oncológicos, pessoas que têm problemas respiratórios e aqueles que ultrapassaram a barreira dos 60 anos.
 
Curiosamente ou discriminatoriamente, esqueceu-se de um grupo cujas deficiências por conta dos tratamentos os expõem a situações assintomáticas: os portadores de anemia falciforme, doença que afeta predominantemente a comunidade negra, principalmente no Brasil, graças ao tráfico negreiro. Falo com propriedade por ser autor de um livro sobre o assunto, publicado pela editora Noovha America (2007).
 
Por falar em Brasil, não há dúvida de que muito ainda acontecerá, de forma regional ou local, em esferas muito maiores, dado nosso tamanho, nossas desigualdades regionais, econômicas e étnico-raciais. Começarei pela questão regional: conversando com um amigo estudioso da questão racial em Salvador, Bahia, falei da falta de álcool gel aqui em São Paulo, e questionei se havia conscientização na capital baiana. Ele me disse: “Como vou falar em álcool gel em algumas comunidades aqui, se sequer há água em alguns lugares? Isso para não falar em saneamento, atendimento hospitalar, entre outros”.
 
Do ponto de vista econômico, a grande campanha de tirar as pessoas da rua para trabalharem em home office, ou férias fora de hora, licença etc., tem surtido enorme efeito. Mas só esqueceram de combinar com o pessoal que vive do trabalho informal, os excluídos do sistema econômico tradicional, como vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, guardadores de carros, diaristas, lavadores de carro trabalhadores que, em sua maioria, por questões de uma exclusão histórica que vem desde o período escravocrata, é formada por negros.
 
Mais: se levarmos em conta ainda o índice de desemprego que esta crise trará e o forte impacto no comércio – vale considerar as pesquisas do IBGE e DIEESE que apontam que, em uma situação de crise econômica, negros e negras são os primeiros a serem despedidos e os últimos a serem empregados –, poderemos, então, ter uma radiografia do tamanho do estrago que o coronavírus trará ao maior país negro do mundo fora da África.
 
É cedo ainda para fazer a conta, uma vez que ainda não chegamos ao pico da crise. Mas medidas podem ser tomadas não só em âmbito do governo, mas também das empresas. Os últimos anos têm sido ricos no debate da questão racial e da diversidade nas corporações. Utilizar todo o conhecimento adquirido neste período, ter sensibilidade para políticas com foco nos mais desfavorecidos – em sua maioria negros e negras e periféricos(as) –, poderá ser uma grande oportunidade para sairmos como um país mais justo e menos desigual. O momento é de solidariedade e de muita reflexão sobre o mundo em que estávamos metidos e que mundo queremos criar depois da crise.

*Mauricio Pestana, ex-secretário de Igualdade Racial do município de São Paulo
 

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