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"MP 905 é imposição inconsequente e prejudicial aos trabahadores"

Fonte: Mundo Sindical 


 
Especializado em advocacia trabalhista e sindical, há 30 anos abraçado às causas de trabalhadores e sindicatos, o advogado Cesar Augusto de Mello conhece profundamente o labirinto da legislação que envolve o mundo do trabalho. Nesta entrevista exclusivaà Mundo Sindical, ele comenta a MP 905, que está causando intensa polêmica e pode até ser devolvida ao governo, em parte ouno todo, pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Junto com o contrato de trabalho verde e amarelo, com promessa de maisempregos para jovens, a MP cria nova reforma trabalhista e amplia a precarização. Mello também analisa as propostas de reforma sindical e revela quais são as três pontas do tridente colocado sobre o sindicalismo. Para ele, as lideranças sindicais precisam modernizar a comunicação com os trabalhadores, aceitar mudanças e construir consenso. Confira.
 
NOVA REFORMA VAI TRAZER AINDA MAIS PRECARIZAÇÃO
 
Mundo Sindical – Terminamos um ano muito difícil para o mundo do trabalho. Como vê a MP 905, que cria o Contrato de TrabalhoVerde e Amarelo?
 
Cesar Augusto de Mello – Primeiro, há que se rediscutir seriamente a possibilidade de utilização das MPs por parte do Poder Executivo. A impressão que nos dá é que tem sido desvirtuada sua finalidade. Muitas delas não comprovam a necessária urgência e retomam a discussão de temas já rejeitados pelo Congresso. Cresce a insegurança jurídica e parece alcançar níveis absurdos. Rotineiramente se altera o ordenamento jurídico em temas sensíveis para a classe trabalhadora.
 
A fúria legiferante é tão grande que se torna tarefa hercúlea a interpretação das normas, pois essas são modificadas quase que rotineiramente. A MP 905/2019 propõe uma nova reforma trabalhista. Não é do tamanho da reforma já levada a efeito pela Lei nº 13.467/2017, mas volta a reduzir direitos dos trabalhadores. Por exemplo, a correção monetária e juros dos créditos trabalhistas caíram pela metade. Serão corrigidos pelos índices da poupança, ficando infinitamente abaixo daqueles praticados pelos bancos.Cria multa que pode chegar a R$ 100.000,00 para o trabalhador que não votar e não justificar ausência em eleição sindical. Cria contribuição previdenciária para quem usufruir do seguro-desemprego, aumenta a jornada dos bancários, restabelece o rabalho aos domingos e feriados e retira os sindicatos das negociações de PLR, entre outros disparates. Esses pontos e até a MP como um todo podem ser devolvidos ao governo antes mesmo de passar pelo crivo do Congresso. A MP é tão prejudicial aos trabalhadores e precarizante de direitos que recebeu 1.930 emendas do Congresso Nacional. Precisa falar mais o quê? Na consulta pública feitapelo Congresso via site, 1.940 cidadãos dizem sim e 53.539 dizem não à MP. Ou seja, na amostragem, 96,51% dos que se manifestaram a desaprovam (24/11/2019 às 18h37). A MP 905 é uma imposição inconsequente que só avolumará o contingente precarizado .
 
REFORMA SINDICAL: PEC 196 É MAIS RAZOÁVEL E PALATÁVEL
 
MS – O que se pode esperar das propostas de reforma sindical?
 
Mello – Hoje, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, temos as Propostas de Emenda Constitucional71/1995, 29/2003 e 314/2004, e apensadas a essas mais quatro PECs. A mais recente e não apensada a qualquer outra é a PEC196/2019 que, na minha opinião, é a mais razoável para uma proposta de mudança que é cultural. O texto parece ser o mais palatável e contempla os interesses de todos os envolvidos, retirando de uma vez por todas a interferência do Estado na organização sindical, criando um Conselho de autorregulação, uma forma de custeio mais justa, um período de transição e a pluralidade que me parece ser irreversível. Mas é preciso colocar em votação e fazer tramitar, porque no estágio em que estamos o movimento sindical atuante, de lutas e conquistas, tem vida curta. Temos uma estrutura sindical montada há mais de sessenta anos e modificar isso da noite para o dia não é tarefa simples. Já o Projeto de Lei 5.552/19 representa o pensamento de uma respeitável parcela do movimento sindical, entretanto é mais do mesmo, e estamos vivendo tempos de mudanças e desafios.
 
Esse modelo sindical não se sustenta mais porque é um sistema cansado, sem fôlego para acompanhar as mudanças impostas aomundo do trabalho com as inovações tecnológicas que nos atingem rotineiramente e irreversivelmente. A unicidade sindical inexiste no restante do mundo. Aqui até que resistiu muito. Importante observar que um PL poderia ser vetado pelo Presidente, já uma PEC, não. (Há a expectativa de que o governo divulgue sua própria PEC para os sindicatos, mas nada havia sido anunciado até o fechamento desta edição, em 6/12. Somente deve sair em 2020).
 
MAIS UNIDOS, SINDICATOS DEVEM MUDAR COMUNICAÇÃO
 
MS – O sindicalismo brasileiro está numa encruzilhada - ou se une, ancorado nos trabalhadores, desatrelado do governo, ou corre o risco de, mais uma vez, ficar contra a parede... É preciso conscientização?
 
Mello – O recente ataque concentrado do governo contra as entidades sindicais e os direitos trabalhistas acabou unindo o movimento sindical brasileiro como nunca, mas não foi o suficiente porque a representatividade não é das melhores e os trabalhadores brasileiros não têm consciência da importância do papel sindical nas relações de trabalho. A contribuição sindical obrigatória de certa forma levou à acomodação de muitos dirigentes, que abandonaram o “chão de fábrica” por mais tempo do que deviam. Agora, precisaram mobilizar os trabalhadores e muitos não conseguiram. É importante destacar que as lideranças sindicais não foram omissas, realizaram debates, denunciaram as mazelas, organizaram manifestações, tentaram mostrar à classe trabalhadora as consequências das reformas mas... Quanto à conscientização, é preciso repensar a maneira de chegar ao trabalhador, novos meios decomunicação devem ser utilizados. 
 
O sindicato deverá continuar tendo sua sede, mas vai ter que estar também dentro do celular do trabalhador e a partir daí iniciar um novo modelo de comunicação voltada para conscientização acerca dos temas de interesse da classe - usar Facebook, aplicativos próprios desenvolvidos, Youtube etc; ou o movimento sindical adere aos novos tempos ou fica fora do jogo.
 
ANO ELEITORAL PODE DIFICULTAR VOTAÇÃO DE MUDANÇAS
 
MS – O Sr. arriscaria um palpite sobre o que vai acontecer no Congresso em 2020 em relação à MP 905 e às propostas de reforma sindical?
 
Mello – O Congresso Nacional tem e terá pela frente muitos problemas – reformas – para tratar e muitos temas indigestos politicamente. Lembrando que 2020 é ano eleitoral, então fica a pergunta: votarão matérias impopulares como a MP 905? Haveráconsenso? As redes sociais têm divulgado fartamente notícias sobre o texto da MP 905/2019 e as nefastas consequências paraos trabalhadores. Dependendo da repercussão popular, ela pode até “caducar” ou ser devolvida ao governo, no todo ou em parte; e sefor à votação sofrerá, certamente, modificações, pois as centenas de emendas apresentadas sinalizam para isso. 
 
Dentre os vários temas em pauta no Congresso a partir de 2020, a reforma sindical é mais um deles, mas não de menor importância. Vejo um certo consenso em vários pontos da PEC Sindical e isso facilita a tramitação e votação. Mas é preciso aprofundar o debate, pois os reflexos da estrutura sindical de um país, do poder negocial das entidades e do custeio sindical se verificam nas relações de trabalho e na economia como um todo.
 
É PRECISO MUDAR, BUSCAR PLENA LIBERDADE SINDICAL
 
MS – Com base em sua longa experiência no setor, diria que há possibilidade de consenso? Onde sindicatos deveriam ceder, ondeo governo deveria ceder?
 
Mello – O consenso sempre é o melhor caminho, mas nem sempre ele é possível por intransigência de uma das partes. Nãoacredito que seja uma questão de ceder, mas de ajuste. A proposta é de uma mudança que eu entendo ser cultural, pois o sistema de organização atual está enraizado nas lideranças sindicais desde 1943, e, portanto, é altamente complexa. Na atual plataforma legal e jurisprudencial, as entidades sindicais têm vida curta. Então, é preciso mudar, buscar a plena liberdade sindical com responsabilidade, dando um fôlego para as entidades pré-constituídas se adaptarem, estipular uma forma de custeio solidária e justa, uma negociação forte e representativa e um mecanismo de autorregulação sindical. Não vejo outro caminho.
 
ENTENDA O TRIDENTE APONTADO PARA OS SINDICATOS
 
MS – Por que o Sr. afirma que com a atual plataforma jurídica e jurisprudencial os sindicatos estão com os dias contados?
 
Mello – É simples. A cesta de maldades contra o movimento sindical tem um tridente pronto e ele foi construído a partir de2004. Vou explicar: hoje temos a função negocial ilusoriamente ampliada pelo art. 611-A, da CLT, mas, em contrapartida, altera-ções legislativas e jurisprudenciais enterraram o poder negocial das entidades.
 
Primeira ponta
 
A (1ª) primeira ponta do garfo da agonia sindical foi a Emenda Constitucional 45/2004, que alterou o § 2º do art. 114 daConstituição Federal, exigindo a necessidade de comum acordo para que os sindicatos possam suscitar dissídio. Antes de 2004, os sindicatos escolhiam livremente o momento de ir aos Tribunais. Hoje, precisam da autorização exatamente daquele que não quis negociar. E mais: em 2016, o STF revogou a Súmula 277, que tratava da ultratividade. Agora, o empregador não negocia, não concede a autorização para o dissídio e a norma coletiva deixa de gerar efeitos no seu termo final. Então, negociar, em boa parte doscasos, passou a ser sinônimo de ceder.
 
Segunda ponta
 
A segunda (2ª) ponta do tridente foi a Reforma Trabalhista, que tornou a contribuição sindical facultativa, e o Precedente Normativo nº 119 do Tribunal Superior do Trabalho, juntamente com a Súmula Vinculante nº 40 do Supremo Tribunal Federal,determinando que os sindicatos somente podem instituir contribuição para associados. E mais: somente podem cobrar de associados, mas as entidades sindicais devem negociar para toda a categoria (Constituição Federal, art. 8º, III). Há um evidente desincentivo à sindicalização e desaparelhamento dos sindicatos.
 
Terceira ponta
 
Por último, a mais afiada das pontas, a terceira (3ª), que foi a aprovação da Lei nº 13.429/2019. Possibilitou a terceirização dequaisquer das atividades dos empregadores. Terceirizado, um trabalhador na atividade principal do empregador sofrerá umdesenquadramento sindical, pois o enquadramento sindical do trabalhador se dá pela atividade de seu empregador. O terceirizado éempregado de uma empresa de prestação de serviços, mesmo, por exemplo, estando o terceirizado trabalhando nas dependências de uma empresa metalúrgica e executando uma atividade tipicamente metalúrgica. É a perda de conquistas históricas de várias categorias. Nenhuma entidade irá resistir a isso se não houver mudanças no sistema, ou melhor, resistirão até gastarem seu patrimônio. É duro, mas é real.
 
DE FORMA MADURA, DEVEMOS CONSTRUIR O CONSENSO
 
MS – O que diria aos dirigentes sindicais em busca de saídas para sobreviver neste início de 2020 e com esse tridente sobresuas cabeças? 
 
Mello – Sem reformas e com a atual conjuntura, acho impossível uma saída, conforme expliquei em outra resposta. Então, a saída seria, primeiro, aceitar que é preciso realizar mudanças e, a partir daí, construir uma proposta minimamente consensuada. O atual contexto leva ao desmonte de toda uma estrutura, nela incluídas as entidades sindicais patronais. É lógico que não se trata do fim das entidades sindicais, mas de que vale uma entidade sindical sem poder negocial, sem arrecadação mínima e sendo dizimada pelodesenquadramento proporcionado pela terceirização? Então, é preciso reagir de forma madura, pois temos magníficos quadros de dirigentes sindicais de várias matizes com um conhecimento acumulado que se vê em pouquíssimos países. É hora de aplicar esse conhecimento na construção de um novo modelo. Lembremos Nietzsche: “O que não me mata, me fortalece”.
 

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