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Dá para privatizar?

Fonte: IstoÉ Dinheiro
 
Joia da coroa das estatais, a Petrobras entrou na mira do governo como candidata à privatização. Os números indicam que transferir o controle à iniciativa privada é um bom negócio. A questão é como fazer essa ideia prosperar no parlamento e na sociedade
 
 
No fim dos anos 1930, a convergência entre a descoberta das primeiras jazidas de petróleo e o crescente uso dessa commodity pelo mercado automotivo disparou uma onda nacionalista. O presidente da República estatizou todos os investimentos já realizados e reuniu as atividades em uma estatal que concentrou o monopólio. A empresa foi transformada em um símbolo do orgulho nacional, e todos os investimentos internacionais no setor do petróleo foram cuidadosa e ferozmente mantidos à distância. No entanto, no início desta década, a perda de competitividade devido à má governança e à crescente corrupção levou à revisão dessa estratégia. Finalmente, um presidente voltado para o mercado conseguiu mudar as coisas. Em 2014, após dois anos de discussão acirrada no Congresso, Enrique Peña Nieto aprovou o fim do monopólio da Petróleos de México (Pemex) sobre a exploração do óleo e do gás mexicanos.
 
Qualquer semelhança com a Petrobras não é mera coincidência. Há quase um século, os países menos desenvolvidos, na América Latina em especial, costumam atrelar o negócio do petróleo ao conceito de soberania, mantendo as atividades sob o controle rígido do Estado. No Brasil, o primeiro poço de petróleo, localizado no bairro de Lobato, em Salvador, foi perfurado em 1939. Não era comercialmente viável, mas mesmo assim foi encampado pelo governo (leia o quadro ao final da reportagem). Desde 1953, com a aprovação da primeira Lei do Petróleo, exploração, extração e refino tornaram-se monopólios estatais, algo que só foi parcialmente alterado em 1997.
 
Só recentemente esse enfoque começou a mudar. Por isso, ao aventar a hipótese de privatizar a estatal petrolífera no início de agosto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, pode ter posto em marcha uma das maiores e mais necessárias controvérsias nacionais. O próprio Guedes tem negaceado com a proposta, ao defini-la como “especulação”. No entanto, no dia 23 de agosto, o próprio presidente Jair Bolsonaro aumentou a densidade da conversa. Ele disse que vai “estudar” a privatização da estatal. “Vamos ver a proposta que vai chegar para mim”, disse ele. “O Paulo Guedes não mostrou ainda, vou ver, daí eu falo.”
 
BRASÍLIA VENDE TUDO A proposta de privatizar a Petrobras veio no âmbito de um anúncio da intenção do governo de vender 17 estatais, oito delas no curto prazo. A maior é a Eletrobras, holding estatal do setor elétrico. No entanto, nomes conhecidos como Casa da Moeda, Correios e Telebrás, e menos famosos como Serpro, Dataprev, Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF), Empresa Gestora de Ativos (Emgea), Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), Lotex e o Porto de Santos também estão na lista. A jóia da coroa, claro, é a estatal petrolífera.
 
 
A intenção de privatizar a estatal do petróleo remonta ao governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O plano foi interrompido durante os governos petistas e retomado após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Sob o governo Michel Temer (MDB), o desenho de venda começou em 2016 na gestão de Pedro Parente. Agora, ela não foi incluída na lista, mas Guedes já disse que a intenção do governo é privatizá-la até 2022. Já na gestão Paulo Guedes, a venda voltou ao discurso e às práticas oficiais. Em junho, pouco mais de 2% das ações com direito a voto detidas pela Caixa foram vendidas em uma operação em bolsa de valores. A expectativa agora é pelo desinvestimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que possui pouco mais de 9% das ações ordinárias da companhia em carteira.
 
Reservadamente, membros da equipe econômica têm dito que a privatização poderia ser gradual. Aos poucos, a Petrobras poderia vender ativos como refinarias, gasodutos e distribuidoras. Mais enxuta, a estatal concentraria seus esforços na exploração e na produção de petróleo. Isso já vem ocorrendo, com a venda do controle de três subsidiárias, os gasodutos NTS e TAG e a BR Distribuidora.
 
Faz sentido vender o controle a Petrobras? O petróleo ainda é um negócio estatal por excelência. Cerca de 90% das reservas comprovadas de hidrocarbonetos (óleo e gás) pertencem diretamente a Estados soberanos ou a companhias estatais. Há poucos estudos isentos sobre a privatização de empresas petrolíferas, pois a discussão é muito distorcida por argumentos políticos e ideológicos. No entanto, em um artigo de 2009, Christian Wolf e Michael Pollitt, dois professores da universidade britânica de Cambridge, analisam os dados de 28 empresas petrolíferas que foram privatizadas ou abriram capital em bolsa. Suas conclusões são indiscutíveis. Privatizar faz bem à saúde financeira das petrolíferas. Considerando um período de sete anos após a transferência à iniciativa privada ou após a abertura de capital, quase todos os indicadores financeiros melhoraram. A rentabilidade patrimonial média avançou de 14,12% para 18,3%.
 
Os benefícios para a economia são diversos. O pagamento de dividendos cresceu até cinco pontos percentuais e, em 92% dos casos, a produção das companhias privatizadas aumentou, com redução no número de funcionários. Na média, a produção cresceu 40%. A explicação para tamanha melhora é simples. “As empresas estatais são obrigadas a perseguir objetivos sociais ou não-comerciais, por isso a privatização melhora a rentabilidade”, escreveram os autores.
 
 
Tudo isso se encaixa no caso da Petrobras. Quando o pré-sal tornou-se viável, o governo do Estado do Rio de Janeiro promoveu uma mobilização intensa para ter acesso a uma fatia maior dos royalties do petróleo, com direito a manifestação oficial. No histórico recente também estão investimentos como a compra de uma refinaria em Pasadena, no Texas, em 2006. Inicialmente a Petrobras comprou 50% do negócio por US$ 360 milhões, mas depois se desentendeu com o sócio belga, teve de comprar o restante e a fatura subiu para US$ 1,18 bilhão.
 
Detalhe: um ano antes, a belga Astra Oil havia pago US$ 42 milhões por 100% das ações da refinaria de Pasadena. Desde então, a empresa já melhorou dramaticamente sua governança, e fatos desse tipo não devem se repetir. Mesmo assim, o mercado vê com bons olhos a saída do governo do controle. Não por acaso, as declarações de Paulo Guedes a favor da privatização, no dia 21 de agosto, fizeram as ações das estatais disparar no pregão. Eletrobras subiu 11% e Petrobras avançou quase 6%.
 
COMPLEXIDADES Independente da vontade política do governo, transferir as atividades da Petrobras para a iniciativa privada não será uma tarefa fácil. O setor é um dos mais regulados. A primeira Lei do Petróleo foi promulgada em 1953. As maiores mudanças vieram em 1997, quando a prospecção e exploração foram permitidas a concorrentes da estatal. No entanto, em 2010, houve nova mudança, com a edição da Lei da Partilha, que visava limitar o acesso das petrolíferas internacionais às jazidas do pré-sal.
 
Complicou? Explicando. No Brasil, há dois modelos de participação privada, a concessão e a partilha. Ambos funcionam de maneira parecida. A União, por meio da Agência Nacional de Petróleo (ANP) oferece áreas para exploração. Os interessados participam de um leilão, e vence a melhor oferta. Pelo modelo da concessão, as empresas têm de pagar royalties, que funcionam como um imposto, com uma alíquota de 10% sobre o que for extraído. No caso da partilha, as empresas reservam parte da produção para a União e pagam royalties de 15%. A vantagem é que as petroleiras não pagam uma compensação financeira se a produtividade for superior ao esperado.
 
 
A administração de contratos de partilha é considerada mais complexa. “Na concessão, o ganho de eficiência é da empresa que extrai o óleo. No contrato de partilha, ela é reembolsada pelos custos, isso tende a não incentivar a eficiência”, disse Anderson Dutra sócio-líder de óleo e gás da KPMG. Esse é apenas um dos exemplos de como o setor é complexo, algo que não passou desapercebido a Roberto Castello Branco, presidente da estatal. “Temos que ou mudar a Lei do Pré-sal, acabar com a partilha, ou então, num movimento mais moderado, acabar com o polígono do pré-sal e deixar à escolha da autoridade o regime de concessão ou partilha [das áreas licitadas]”, disse ele no dia 20 de agosto. A flexibilização da partilha vai tornar viáveis áreas menos produtivas.
 
Há outros pontos. Petróleo é um negócio intensivo em capital. Os investimentos são pesados e levam vários anos para recompensarem os investidores, o que levou à formação de monopólios. E nada pior do que um monopólio nas mãos de uma empresa privada. “Uma venda da Petrobras passaria pela quebra dos monopólios do refino e do gás”, diz Luiz Carvalho, analista-sênior de petróleo e gás na América Latina para o banco suíço UBS. Ele explica que, no caso do refino, a ruptura está a caminho, com a proposta de privatizar oito das treze refinarias da estatal. No caso do gás, porém, será preciso mais esforço. “Empresas privadas que quiserem entrar no negócio de gás terão de construir uma infraestrutura de gasodutos para levar o produto das jazidas aos consumidores”, diz ele. Esse investimento só será viável se os interessados conseguirem garantir uma demanda firme para o gás entregue ao cliente.
 
Também resta a questão de como será realizada a venda. O cenário preferido por investidores e analistas é o da pulverização do capital, em que a companhia passaria a ser privada, mas sem ter um controlador definido. A privatização da BR Distribuidora é uma experiência que deve servir de referência. O modelo de venda seria similar ao da Eletrobras, com cada acionista podendo ter no máximo 10% das ações. A União ficaria com uma ação de classe especial (“golden share”), com direito a veto em questões estratégicas previamente definidas, como a mudança de sede. Segundo Fernanda Delgado, pesquisadora da FGV Energia, a uma empresa de capital diluído na bolsa seria ideal para criar um ambiente de competição no setor. O fim do direito de preferência da estatal na aquisição de áreas no pré-sal e até mesmo a mudança do regime de partilha podem ganhar força.
 
O processo não será fácil. “A privatização da Petrobras no tamanho em que se encontra atualmente seria uma tragédia.” A frase não é de um sindicalista, mas de Carlos Cavalcanti, vice-presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). “Não vejo problema em privatizar a produção e a exploração, desde que a Petrobras não esteja atuando em nenhum outro elo da cadeia”, disse ele em um evento na Fiesp. José Marin Rangel, presidente da Federação Única dos Petroleiros (FUP) vai na mesma direção. “Temos de conscientizar a população da importância da Petrobras”, diz ele. “O setor privado só visa o lucro e não tem compromisso com o País.”
 
Carvalho, do UBS, defende a privatização – o banco foi o primeiro analisar essa possibilidade, em um relatório enviado aos clientes em fevereiro deste ano. No entanto, ele mostra-se razoavelmente cético com as possibilidades no curto prazo. A Lei do Petróleo de 1997, que define que a União tem de possuir obrigatoriamente 50% mais uma das ações com direito a voto da Petrobras, é uma lei ordinária, e pode ser alterada por maioria simples no Congresso. No entanto, é mais fácil falar do que fazer. “É preciso que haja alinhamento prévio com o Congresso, e as reformas da Previdência e tributária já estão em tramitação”, diz ele. Esperam-se fortes emoções.


 

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