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Demitido gasta FGTS rapidamente e depois perde patamar de consumo

Fonte: Folha de S. Paulo
 
Resultado de estudo pode também indicar riscos do projeto do governo de liberar parte do fundo
 
Em estudo citado por seus pares como especialmente bem formulado, a economista brasileira Joana Naritomi e o belga François Gerard concluem, com base em evidências, que o fundo de garantia (FGTS) falha em sua função de seguro para a perda de renda na demissão injustificada.
 
O trabalho comparou o consumo de grupos semelhantes de trabalhadores durante 25 meses: o grupo dos demitidos sem justa causa teve, no momento da rescisão e logo após, um pico de compra de bens de mais de 35% acima da média mensal do ano anterior à rescisão.
 
A partir do segundo mês, porém, o consumo cai e fica até 17% abaixo da média do ano anterior a partir do quinto mês, quando acabam as parcelas de seguro-desemprego —o gráfico abaixo mostra a curva dos que continuaram sem emprego formal após a demissão.
 
 
O resultado mostra que o fundo não é usado para o que os economistas chamam de “suavização de consumo” —mantê-lo constante, sem perdas relevantes no futuro. 
 
“O estudo é bastante importante porque registra a experiência para além do laboratório. Não estão perguntando para as pessoas se elas preferem gastar mais agora ou no futuro. Mostram o que aconteceu de fato”, diz o professor do Insper Ricardo Brito.
 
Na base do resultado obtido está a forma de desembolso desses recursos, diz Joana, professora de desenvolvimento internacional e administração pública da London School of Economics —nos últimos meses, ela fez pesquisa na Universidade Columbia (EUA), onde trabalha Gerard, seu coautor.
 
Na demissão sem justa causa, o trabalhador recebe de uma só vez o saldo da conta no FGTS e multa de 40% sobre esse saldo (na média, o total é o triplo do salário mensal). Esse valor, somado ao seguro-desemprego (na média metade do salário), seria suficiente para manter por vários meses o padrão de consumo anterior à demissão.
 
“Não quer dizer que o fundo de garantia seja desnecessário. Os trabalhadores precisam de instrumentos de seguridade. Mas, se o objetivo é fornecer um seguro continuado, é preciso refletir sobre o impacto da atual forma de desembolso.”
 
(Pouco estudados, benefícios pagos de uma vez só são mais comuns em países em desenvolvimento, já que a administração do seguro-desemprego costuma ser mais cara e complexa.)
 
O resultado mostra também como políticas públicas podem ser afetadas por eventos estudados pela economia comportamental —neste caso, o mecanismo inconsciente que faz com que valorizemos mais o consumo no presente, em detrimento da poupança para evitar apertos no futuro. 
 
Esse imediatismo é chamado pelos economistas de viés do presente (“present-bias”, em inglês) e estudos indicam que é especialmente alto entre os brasileiros.
 
O viés pode ser um dos motivos pelos quais a maioria dos trabalhadores entrevistados no estudo declarou que não gostaria de receber todo o seguro-desemprego antecipadamente, “para não gastar tudo de uma vez só”.
 
“Os economistas estão cada vez mais sensíveis ao fato de que as pessoas não são máquinas de calcular”, diz Joana.
 
O imediatismo é um fator que precisa ser levado em conta, segundo ela, na discussão das políticas. “A decisão tomada pela pessoa hoje pode não ser a melhor para seu futuro nem para o bem-estar global, o que pode justificar um sistema de poupança forçada”, diz.
 
Brito, do Insper, concorda. “A constatação de que as pessoas não ‘suavizam’ os recursos indica que pode ser benéfico forçá-las a poupar.”
 
De cada 10 demitidos, 6 afirmaram que apoiam o formato atual do fundo, e a maioria dá como motivos “controlar as despesas” e “não gastar tudo de uma vez”.
 
O esgotamento rápido dessa poupança, porém, é o outro lado da moeda mostrado no trabalho de Joana e Gerard. Segundo a economista, são necessários mais estudos para avaliar o custo-benefício de outras opções de desembolso.
 
“O FGTS pode ter várias funções, como a de seguro contra perda de renda, a de amparo no caso de uma doença grave ou para a compra da casa própria. Diferentes formas de liberá-lo poderiam ser testadas.”
 
Para o professor da escola de economia da FGV-SP Eduardo Zylberstajn, que pesquisa mercado de trabalho, mecanismos que protejam os empregados de um choque prejudicial involuntário são necessários, mas é preciso avaliar se não há modelos mais eficientes que os adotados no Brasil.
 
O fundo de garantia eleva o custo de contratação e, segundo ele, funciona como transferência de renda pouco transparente: poupança sub-remunerada dos trabalhadores financia projetos de saneamento, construção civil e incorporação imobiliária.
 
“A ideia não é desmontar a proteção, mas o estudo é mais uma forte evidência de que há problemas a discutir. Quem de fato precisa de proteção? Faz sentido FGTS para todas as faixas de salário?”, questiona.
 
Ricardo Brito, especialista em finanças e decisões de poupança, acrescenta que pode ser interessante pesquisar como a educação financeira alteraria a falta de planejamento para o futuro.
 
A falta de estudos também acende um alerta em relação ao projeto do atual governo de liberar parte do dinheiro do fundo de garantia para estimular a economia. 
 
“Pode de fato gerar mais consumo, mas é importante considerar que, num momento de choque futuro, a pessoa não terá mais esse recurso. O aumento de consumo terá um custo, e não estamos estudando qual será ele.”
 
Zylberstajn, que é professor da escola de economia da FGV-SP e coordenador de pesquisas da Fipe, concorda: “Esse é o perigo de um sistema que não é bem pensado. Liberar os saldos pode colocar em risco a saúde financeira do fundo, que concede empréstimos de longo prazo, e agravar a crise da indústria de construção”.
 
O economista diz que o Brasil é o único país que mistura quatro diferentes formas de proteção ao emprego: subsídio ao emprego formal (abono); pagamentos mensais que cessam ao se obter nova vaga (seguro-desemprego), desembolso único (FGTS) e taxa contra demissão injustificada (multa de 40%).
 
“Cada política tem sua importância, mas provoca distorções. Misturar tudo agrava os problemas.”
 
COMO FOI FEITO O ESTUDO
 
1
Os pesquisadores levantaram os dados de trabalhadores formais do setor privado demitidos no estado de São Paulo entre 2011 e 2013, registrados na Rais, base do governo federal (as pessoas não são identificadas)
 
2
Foram considerados demitidos que tinham ao menos 12 meses de contrato (e, portanto, direito ao seguro-desemprego) e no máximo 72 meses de vínculo (o que permite calcular o valor do saldo do FGTS)
 
3
Foram analisadas compras de 400 mil empregados formais inscritos na Nota Fiscal Paulista entre de 2010 e 2014 
 
4
Foram estudados cerca de 78 mil demitidos que participaram da NFP nos 12 meses anteriores e posteriores ao mês da demissão (sempre sem identificação individual)
 
5
Para descartar que esses trabalhadores tivessem comportamento diferente dos não inscritos na NFP, seu perfil foi comparado ao dos demitidos em geral; em pequeno grau, os inscritos tinham maiores escolaridade, tempo de vínculo e salários médios
 
6
O trabalho mede o consumo de bens (exclui gastos com serviços e habitação, por exemplo), que representa cerca de 30% do salário médio do trabalhador antes da demissão; comparação com a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) mostrou que foi analisada parcela significativa do consumo
 
7
Para descartar a hipótese de que os demitidos tivessem passado a comprar sem notas, foi estudado o consumo em farmácias, setor em que as vendas com nota fiscal são a regra
 
8
Com base na NFP, foram identificados o ramo da empresa vendedora, para classificar o tipo de consumo —se um bem durável (loja de eletrodomésticos) ou não durável (restaurante ou quitanda); a variação ocorre nos dois tipos
 
9
136 inscritos no seguro-desemprego em 2018 foram também entrevistados; 2% tiveram problema para receber o FGTS, e 12% para receber a multa de 40%. Na média, a rescisão equivalia a 5 meses de salário. Só 4% não pretendiam sacar todo o saldo do fundo
 
Entenda o FGTS
 
> Criado em 1966, era alternativa à estabilidade no emprego —o seguro-desemprego só veio em 1986. 
 
> Formado por depósitos do empregador (8% da remuneração do empregado)
 
> Hoje pode ser sacado em 9 casos, entre eles demissão sem justa causa, aposentadoria, compra da casa própria ou aos 70 anos
 
> Há no Congresso 165 projetos para ampliar as hipóteses de saque
 
> O governo anunciou no fim de maio que estuda liberar parte do saldo para estimular a economia
 
> Poupança forçada, o fundo paga aos trabalhadores só 3% de juros ao ano, o que corrói o patrimônio. De 1997 a 2017, rendeu 202% contra inflação de 250%, nos cálculos do economista Pedro Fernando Nery
 
> Enquanto o seguro-desemprego é mensal e cessa quando a carteira volta a ser assinada, o fundo é todo liberado na demissão
 
> O patrimônio líquido do fundo era de R$ 104 bi em setembro de 2018 (último dado disponível), e financia habitação, saneamento e transporte (em 2019, R$ 78,6 bi)
 

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