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A conformidade legal da privatização de estatais no Brasil

Fonte: Jota / João Pedro Paro*
 
Compliance das privatizações envolverá uma intensa participação do Legislativo


 
Muito se tem falado sobre as possibilidades de privatizações de empresas estatais no Brasil. A meta almejada pelo Ministério da Fazenda (MF) é obter, ainda neste ano, receita de US$ 20 bilhões. De acordo com dados divulgados pelo ministro Paulo Guedes, o tesouro nacional empenha mais de R$ 18 bilhões ao ano para fechar as contas das estatais dependentes que são incapazes de gerar receitas suficientes para bancar as despesas. O Brasil possui 135 estatais, sendo que 117 são do setor produtivo e 18 na área financeira. As principais são: Banco do Brasil, Caixa, BNDES, Correios, Petrobras e Eletrobrás.
 
Segundo o MF, tais empresas pagariam, em média, salário mensal de R$ 13,4 mil, seis vezes mais que o rendimento médio do trabalhador com carteira assinada. Daí é que surgiu como proposta, o ousado e polêmico plano de desestatização do atual governo. Entre as empresas que estariam “dando prejuízo” estão: Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), a Amazul (Amazônia Azul Tecnologias de Defesa), a Ceitec (Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada), a CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos), a CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais), a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), a Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), a EPL (Empresa de Planejamento e Logística) e a Imbel (Indústria de Material Bélico do Brasil). 
 
Haveria ainda, ao menos, 700 mil imóveis da União para serem vendidos e que poderiam originar uma receita de um bilião de reais para o Estado brasileiro.
 
É importante lembrar que esta agenda de redução da intervenção do Estado na economia é antiga e já na década de 1990 o país privatizou 119 estatais, com a geração de US$ 70,3 bilhões em receita. No contexto atual temos a seguinte realidade comparada:
 
 
Para além dos complexos aspectos econômicos e políticos que recaem sobre o plano de desestatização do governo, resta uma questão jurídica: Qual é o devido processo legal de uma privatização?
 
Uma empresa estatal pode ser controlada parcial ou totalmente pelo Estado. Estado entendido em sentido amplo, portanto, abarcando a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. Neste sentido, uma empresa estatal pode ser classificada de duas maneiras: sociedade de economia mista ou empresa pública. Na primeira o Estado é dono da maior parte do capital social da empresa (Petrobras). O segundo tipo, por sua vez, envolve empresas exclusivamente administradas pelo Estado. Portanto, todo recurso financeiro investido nessas companhias é público (Correios).
 
Naquilo que diz respeito ao procedimento legal para a privatização, poderíamos dizer, numa primeira análise, que dependerá do estatuto jurídico das empresas estatais previsto na lei federal n° 13. 303, de 30 de junho de 2016. No entanto, em junho de 2018, o ministro do STF Ricardo Lewandowski, concedeu liminar, proibindo o governo federal de vender, sem autorização do Congresso, o controle acionário de empresas públicas de economia mista, como Petrobras, Eletrobras e Banco do Brasil. De acordo com o ministro: 
 
“o art. 173 da CF prevê a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Essa exploração poderá dar-se pela constituição de empresas públicas e sociedades de economia mistas, bem como de subsidiárias destas, as quais desenvolverão atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços. Ocorre que, nos termos do art. 37, XIX, da CF, somente por lei específica poderá ser autorizada a instituição de empresa pública e de sociedade de economia mista. Ademais, prevê o texto constitucional que depende de autorização legislativa a criação das respectivas subsidiárias, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada (art. 37, XX)” ADI 5624 MC / DF.
 
Lewandowski completa o raciocínio mencionando a teoria da simetria ressaltando que não poderia o Estado abrir mão da exploração de determinada atividade econômica, expressamente autorizada por lei, sem a necessária participação do seu órgão de representação popular, porque tal decisão não compete apenas ao Chefe do Poder Executivo. Desta forma, em decisão liminar determinou que: “ad referendum do Plenário, para que, desde já, se confira interpretação conforme à Constituição ao art. 29, caput, XVIII, da Lei 13.303/2016, para afirmar que a venda de ações das empresas públicas, sociedades de economia mista ou de suas subsidiárias ou controladas exige prévia autorização legislativa, sempre que se cuide de alienar o controle acionário”. 
 
Na prática então, caso o entendimento do relator seja confirmado no Plenário do STF, o governo precisará elaborar uma lei para cada privatização de estatal em razão do princípio da simetria (empresas criadas por lei deverão ser vendidas ou extintas pelo mesmo instituto jurídico).
 
Para julgamento final do processo, a corte realizou audiências públicas com a presença de 40 especialistas, contando também com representantes da Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. No passado o tema foi trazido à baila em outras ações similares (ADIn 1703-MG, Relator Ilmar Galvão, 27.11.97, DJ 13.8.99; ADIn 1724-MG, Relator Néri da Silveira, RTJ 171/410; ADIn 1549-MG, Relator Francisco Rezek, 16.12.96; ADIn 1724-MG, Relator Néri da Silveira, 11.12.97, DJ 22.10.89) e o STF se posicionou pela desnecessidade de uma lei específica para cada processo de privatização. Sendo que na ADI nº562, de relatoria do ministro Ilmar Galvão, ficou consolidada, no plenário da Corte Suprema, a posição a favor da possibilidade de se entender o Programa Nacional de Desestatização como autorização genérica dada pelo Legislativo para que o Executivo faça a gestão da coisa pública e a ordenação da vida econômica no país.
 
Extrai-se do todo exposto que independente de eventuais posições políticas ou ideológicas sobre o programa de desestatização empreendido pelo atual governo, ao fim e ao cabo, é importante frisar a relevância do governo estar em necessária conformidade legal com os parâmetros jurídicos da constituição federal e demais leis esparsas. Afinal de contas, o Compliance das privatizações envolverá uma intensa participação do Legislativo, como seria de se esperar numa democracia em que os poderes interagem em harmonia e recíproco controle.
 
*João Pedro Paro – Advogado, Cientista Social e Pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP. É Pós-graduado em Compliance e Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra e Mestre em Direito do Estado pela USP.
 

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