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Constituição e Justiça Trabalhista

Fonte: Valor Econômico / Jorge Pinheiro Castelo*
 
Embora ainda não se saiba se o projeto de extinção da Justiça do Trabalho é mesmo concreto ou foi apenas uma ideia comentada em voz alta pelo presidente que, agora – diante das convocações dos protestos contrários à proposição – dá sinais de recuo, a polêmica está instalada.
 
De antemão, podemos assegurar que a supressão da Justiça do Trabalho fere cláusula pétrea da nossa Constituição. A estrutura do Poder Judiciário no seu núcleo central (e não periférico) como concebida pelo Constituinte Originário não pode ser objeto de emenda constitucional, sob pena de violação de cláusula pétrea relacionada à separação de poderes (inciso III do §4º do art. 60 da C.F.)
 
O Constituinte Originário definiu como núcleo essencial da estrutura técnico-operacional do Poder Judiciário a existência de uma Justiça Especial e Especializada. Com uma função específica no plano das atribuições, que caracterizam a soberania e independência do sistema orgânico do Poder Judiciário.
 
Nesse sentido, fixou como um dos pilares para o funcionamento independente do Poder Judiciário brasileiro, uma estrutura que tem na Justiça do Trabalho o juiz natural a garantir que os direitos trabalhistas sejam julgados por juízes investidos da competência jurisdicional especial e especializada.
 
Nos artigos 92 (II-A), 111 e 114, a Constituição de 1988 fixa a especialização da Justiça do Trabalho como forma peculiar e típica de garantia de acesso aos direitos sociais do trabalhador (Capitulo II do Título II), ou seja, aos direitos trabalhistas (Art. 7º e 8º da C.F.), inclusive, em consonância com os fundamentos constitutivos do Estado Democrático de Direito. Em particular com o princípio da dignidade da pessoa humana (Inciso III do Art. 1º da C.F.), do valor social do trabalho (Inc. IV do Art. 1º da C.F.) e da justiça social (inciso I e III do art. 3º da C.F). Isso também é cláusula pétrea.
 
Tanto é que quando foi editada a Emenda Constitucional nº 45/2004, que atribuiu à Justiça do Trabalho a competência de julgar matérias do direito administrativo, ou seja, apreciar as relações laborais dos funcionários públicos estatutários, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou essa ampliação de abrangência inconstitucional (ADI 3.395-6/DF).
 
Na época, o entendimento era que não se tratava meramente de competência de matéria, mas sim, de uma verdadeira transgressão e afronta ao cerne e ao núcleo da estrutura técnico-operacional de funcionamento do Poder Judiciário brasileiro. É a mesma defesa que fazemos agora diante da ideia de se levar ou transferir a disciplina dos direitos trabalhistas e a apreciação dos conflitos da Justiça do Trabalho para a Justiça Comum.
 
Outro empecilho para que a proposta possa se concretizar, é o fato de os direitos do trabalhador – fixados constitucionalmente nos arts. 7º a 11 – integrarem os direitos e garantias individuais fundamentais definidos no Capítulo II do Título II da CF., sendo eles próprios, nessa condição, inalteráveis por emenda constitucional (Inc. IV do §4º do Art. 60 da CF.). A extinção da Justiça Laboral, ao comprometer gravemente o acesso à Justiça, resultaria na anulação desses direitos constitucionais trabalhistas intocáveis.
 
Assim, a preservação da função jurisdicional privativa da Justiça do Trabalho não pode ser aniquilada ou suprimida, também pela ameaça de afetar o núcleo intangível do modelo de funcionamento do Poder Judiciário brasileiro, especialmente, a garantia de fácil acesso à Justiça pela grande maioria da população. Tal como opera hoje, ela permite que, graças à especialização e a partir de conhecimentos mais profundos e da sensibilidade mais aguçada, se obtenha maior agilidade, eficiência e efetividade na tutela do direito laboral.
 
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2017, a tramitação dos processos no primeiro grau da Justiça do Trabalho, na fase de conhecimento – que é aquela em que o juiz recebe as exposições das partes até proferir uma decisão durou em média 11 meses. Na Justiça Federal a espera pela sentença nessas mesmas condições chegou a três anos e oito meses. Já na estadual a três anos e sete meses.
 
A maior parte da população brasileira que – não tem acesso à saúde, à educação e à segurança -, só encontra e tem contato com o Estado no seu “dia na Corte”, na Justiça do Trabalho, que funciona como uma válvula da panela de pressão dos enormes conflitos, individuais e coletivos próprios do sistema capitalista – mas aqui, marcados pela abissal desigualdade da sociedade.
 
A proposta de extinção se revela como um caso típico de legalização da opressão, ao retirar do trabalhador a própria possibilidade de defesa jurídica, política e moral contra a injustiça, cujo propósito inconteste é a absoluta negação dos direitos da maioria da população mais vulnerável que será silenciada, desprezada e humilhada pelo próprio Estado, com o rompimento de um dos mais importantes acordos da democracia e do capitalismo social brasileiro, que se consubstancia na figura da Justiça do Trabalho.
 
*Jorge Pinheiro Castelo é advogado, especialista, mestre, doutor e livre docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro da OAB-SP.
 

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