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O futuro do sindicalismo brasileiro

Fonte: O Estado de S. Paulo / Davi Lago*
 
Com a guinada legislativa pela diminuição da ingerência estatal o sindicalismo brasileiro tem a oportunidade de aprender as lições da história recente e desenvolver uma nova atitude enquanto ator social.
 
O fim da contribuição sindical obrigatória estabelecido pela reforma trabalhista (Lei n.13.467/17) e reafirmada pelo STF no último dia 29 abre novo ciclo no sindicalismo brasileiro. Assim, no curto prazo há tendências evidentes e bem exploradas no debate público como o desaparecimento progressivo dos “sindicatos de gaveta” e a possibilidade de fortalecimento dos sindicatos genuínos. Contudo, no longo prazo há um questionamento mais denso ao sindicalismo – não só brasileiro, mas mundial: ele sobreviverá às densas mudanças estruturais que o mundo do trabalho atravessa no século XXI? Há futuro para os sindicatos em geral?
 
Crise do sindicalismo contemporâneo
 
É crucial frisar que os sindicatos e os partidos políticos modernos emergiram no contexto da Revolução Industrial com o aumento da complexidade da divisão do trabalho e do número de ocupações. Grupos distintos se estruturaram na defesa dos trabalhadores especialmente contra a exploração desmedida/desumana de sua força de trabalho. O patronato procurou impedir que os interesses operários se aproximassem e se associassem. Ao menos até o século XIX existiam diversas leis europeias proibindo a formação de associações de “auxílio mútuo” e de trade unions, as formas iniciais do sindicato moderno. Progressivamente os sindicatos se estabeleceram como atores na defesa de seus representados. O partido político moderno também se consolidou com a incumbência de desenvolver um programa teórico/político aos trabalhadores. Contudo, as estruturas do trabalho mudam vertiginosamente neste início de século com inovação tecnológica, inteligência artificial, robotização e digitalização de processos industriais, administrativos e econômicos. Outros fatores como a alvorada da economia compartilhada, de redes de consumo consciente, do aumento da cidadania digital, das microproduções através de impressoras 3D, dos hackerspaces e makerspaces, da economia criativa nas nações em desenvolvimento, reconfiguram os mercados e sedimentam a nova fase do capitalismo – ou “capitalismo informacional” no dizer de Manuel Castells.
 
Há pesquisadores que preveem que ante as mudanças econômicas e sociais deste século os sindicatos não sobreviverão – ao menos não do modo como os conhecemos hoje. O principal indicador seria a redução da presença física dos sindicalistas junto às empresas. Na Alemanha, no início dos anos 2000, havia uma lei garantido a presença sindical nos locais de trabalho, mas a adesão de fato era de apenas 6%. Somados ao declínio da antiga indústria e à erosão do corpo de membros, os sindicatos também foram lentos em incorporar em suas agendas as novas demandas dos trabalhadores por igualdade, como direitos das mulheres, migrantes, minorias étnicas e trabalhadores com deficiências – demandas essas atendidas por outros entes como organizações não-governamentais e iniciativas de empreendedorismo social. Entretanto, estudos recentes como Will trade union survive in the platform economy? de Kurt Vandaele e European trade unionism: from crisis to renewal? de Magdalena Bernaciak (et al.) mostram que o fim do sindicalismo não é tão simples assim. Forças sindicais na Europa passaram a incorporar novos temas em suas agendas e a compor acordos e parcerias com novos atores sociais baseados em capital tecnológico.
 
O redesenho normativo do sindicato no Brasil
 
Para entendermos as bases jurídico-normativas que se desenham para o sindicalismo brasileiro é necessário compreender as linhas gerais de sua evolução histórica. Os sistemas jurídicos surgidos no mundo ocidental voltados a estruturar e reger as relações trabalhistas no capitalismo, grosso modo, se dividem em dois padrões nas sociedades democráticas: (1) o modelo de normatização autônoma e privatística (ou “modelo negociado”), e (2) o modelo de normatização privatística mas subordinada (ou “modelo legislado”). O primeiro modelo associado aos EUA e Inglaterra, dá ênfase ao contrato; o segundo ligado às nações da Europa continental, dá ênfase na ingerência estatal.
 
O Brasil adotou desde a CLT em 1943 um sistema de justiça trabalhista com feições mais próximas do “modelo legislado”. A índole autoritária do governo Vargas teve o objetivo explícito de buscar cooperação e não o conflito entre classes sociais antagônicas. A legislação sindical foi estruturada no tripé liberdade sindical (livre associação do trabalhador e do empregador a um sindicato de sua categoria), unicidade sindical (imposição pelo Estado de uma base territorial para a atividade de uma única entidade sindical para determinada categoria econômica ou profissional) e, da agora extinta, contribuição sindical compulsória (de todos os trabalhadores, sindicalizados ou não, era descontado anualmente, na folha de pagamento, o salário de um dia de trabalho).
 
O que sempre esteve em vista foi a subordinação dos sindicatos ao Estado, algo que a manutenção da legislação facilitou muito. As Constituições que o Brasil teve desde 1945 (1946, 1967, 1988) mantiveram de um modo ou de outro a conexão ou dependência dos sindicatos com relação ao Estado. É certo que em seus dispositivos a atual Constituição assegurou a liberdade de associação e a autonomia dos sindicatos além de produzir incentivos à negociação coletiva trabalhista, contudo, não acompanhou as profundas mudanças pelas quais o sindicalismo passou no resto do mundo em direção ao pluralismo sindical. Nem mesmo a chegada ao Governo Federal pelos líderes do novo sindicalismo do ABC paulista – que avançou criticando o cupulismo sindical anterior – alterou a situação.
 
Este olhar panorâmico demonstra a densidade da mudança ocasionada pela reforma trabalhista ao extinguir a contribuição sindical obrigatória. Mas é necessário destacar ainda outras três mudanças que a Lei n.13.467/17 provocou na CLT com implicações ao movimento sindical: (1) a inclusão da regra de que as condições que forem negociadas entre a empresa ou seu sindicato patronal, de um lado, e o sindicato dos empregadores, de outro lado, terão força de lei, mesmo se contrariarem a lei ou diminuírem em tese direitos do empregado; (2) a introdução de representantes dos empregados no local de trabalho: trabalhadores de empresas com mais de 200 empregados tem direito de instituir uma comissão de representantes sem qualquer vínculo com o sindicato; (3) a possibilidade da assinatura de um termo de quitação anual de obrigações trabalhistas pelo empregado, na presença de seu sindicato, confirmando que houve o cumprimento de obrigações trabalhistas por parte da empresa.
 
Reorientação do sindicalismo brasileiro
 
Desde sua concepção, os sindicatos carregam em si noções e convicções claras como o poder da organização e a consciência da luta política e disputa pelo poder. Os sindicatos se tornaram verdadeiras escolas de formação política. “Como escolas de guerra, os sindicatos não têm competidores” disse Engels em A condição da classe trabalhadora na Inglaterra. A expansão do sindicato como ente da luta específica das causas operárias (defesa dos salários, luta pela redução da jornada e a melhoria das condições de trabalho) para o moderno partido político de massas é um fato político de consequências maiores para a história do século XX como as experiências totalitárias e as Guerras Mundiais demonstram. Como outras estruturas do jogo político moderno os sindicatos também se tornaram vulneráveis aos desvios do corporativismo, burocratismo, corrupção e cooptação. Mas, com idas e vindas a atividade sindical foi determinante para a sedimentação dos direitos do trabalhador e a noção de que “o trabalho não é uma mercadoria” – como proclama o primeiro dos princípios fundamentais da Organização Internacional do Trabalho. Este simples enunciado sintetiza a diretriz central de atuação dos movimentos sociais trabalhistas desde meados do século XIX até a contemporaneidade.
 
Com a guinada legislativa pela diminuição da ingerência estatal o sindicalismo brasileiro tem a oportunidade de aprender com as vastas lições que a história recente apresenta e desenvolver uma nova atitude enquanto ator social. Anestesiados por uma legislação de cooptação utilizada pelo Estado Novo, pela ditadura militar e por todos os governos desde a redemocratização, os sindicatos encontram hoje enorme dificuldade para se fazer presentes nos ambientes tecnificados e responder às novas demandas dos trabalhadores. Para se ter uma noção do ponto de descompasso no direito comparado, o Brasil deixa agora Egito e Equador como os únicos países do mundo que permanecem com contribuição sindical obrigatória. Mas, para além de reduzir o número absurdo de 16,5 mil sindicatos (no Reino Unido existem 168 entidades sindicais; na Dinamarca, 164; na Argentina, 91; na Alemanha, 11), há uma abertura para os sindicatos regressarem à sua essência.
 
Estudos sistemáticos sobre o tema, como os desenvolvidos pelo professor Jeremy Waddington da Universidade de Manchester, apontam que sem uma volta às empresas e às negociações coletivas, os sindicatos tendem a desaparecer pois são instituições enraizadas nos locais de trabalho e não na sociedade civil. As virtudes dos sindicatos autênticos precisam ser retomadas e atualizadas com urgência: compromissos sociais, transparência, democracia interna, coesão na representatividade, firmeza e sensibilidade nas negociações. O sindicato não é um fim em si mesmo, é uma ferramenta inteligente para o refinamento dos direitos trabalhistas e avanço da sociedade brasileira como um todo. O novo ciclo do sindicalismo brasileiro precisa abandonar a letargia do neocorporativismo e ser fiel à sua essência: lutar de fato pelo direito dos trabalhadores e das trabalhadoras.
 
*Davi Lago é Mestre em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e autor de Brasil Polifônico.
 

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