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A reforma trabalhista e a força de trabalho imigrante no Brasil

Fonte: Brasil de Fato / Luís Felipe Aires Magalhães*
 
Mudanças afetam particularmente os empregados estrangeiros em situação de vulnerabilidade
 
A constituição da sociedade brasileira se deu historicamente com a confluência em nosso território de imigrantes (voluntários ou não) de diversas nacionalidades. Embora narrativas oficiais privilegiem os imigrantes de nacionalidade europeias, a presença africana, árabe, asiática e latino-americana em nossa formação sócio-cultural é traço característico de nossa existência enquanto um povo único – o povo brasileiro.
 
Em volumes muito inferiores à das chamadas migrações históricas, nosso país tem recebido, especialmente desde as últimas três décadas do século passado, contingentes migrantes de países da América do Sul (bolivianos, peruanos e paraguaios). Junto também de imigrantes sul-coreanos, eles somam-se, nesse novo século, a imigrantes africanos (senegaleses, ganeses, moçambicanos), caribenhos (sobretudo haitianos) e asiáticos (bengalis), além de refugiados de mais de 80 nacionalidades, com destaque para os sírios, angolanos, colombianos, congoleses e palestinos.
 
O racismo estrutural da sociedade brasileira manifesta-se, ainda, em matéria de política imigratória: o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6815/80, resquício da Ditadura Civil-Militar, estabelece, em seu Art. 2º, que o imigrante no Brasil estará submetido à lei de Segurança Nacional e que a própria lei migratória atenderá, fundamentalmente, aos interesses do trabalhador nacional. Assenta, portanto, as bases para a securitização da questão migratória, com a estigmatização do imigrante como assunto de polícia (federal) e como uma ameaça ao emprego dos trabalhadores brasileiros.
 
Aos imigrantes e refugiados que chegam ao país sem vultuosos recursos econômicos (a imensa maioria), não há o reconhecimento de sua formação educacional e qualificação profissional, o que lhes impele a ocuparem postos de menor qualificação no mercado de trabalho brasileiro, postos estes caracterizados por processos de recrutamento enganosos, terceirização do regime de contratação, condições precárias de trabalho e de alojamento e outras formas de super-exploração da força de trabalho, formal e informalmente ocupada.
 
Trabalhadores haitianos
 
Além de figurar como o principal fluxo imigratório recente no Brasil (entre 2010 e 2016, pelo menos 85000 haitianos e haitianas tiveram no Brasil país de trânsito ou de destino), a imigração haitiana no país é também a principal nacionalidade no que se refere às autorizações de trabalho expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego (87,9% do total entre 2010 e 2015), a principal nacionalidade em termos de emissão de carteira de trabalho (29% do total entre 2010 e 2015) e o maior grupo estrangeiro no mercado formal de trabalho, superando, ainda em 2013, fluxos já consolidados, como o de portugueses, bolivianos e peruanos.
 
Caracterizada como um fluxo mais documentado em razão da RN 97 do CNIg (Conselho Nacional de Imigração), que criou, em 12 de Janeiro de 2012, o Visto de Ajuda Humanitário exclusivo para haitianos, a imigração haitiana é por isso também mais formalizada que outros fluxos: enquanto muitos imigrantes peruanos e bolivianos, por exemplo, vivem e trabalham por décadas em São Paulo sem qualquer documentação, a solicitação de refúgio pelo haitiano e a obtenção do visto lhe estende, além do Protocolo de solicitação de refúgio, um CPF e uma carteira de trabalho. Daí derivam algumas das principais particularidades deste fluxo, como a dispersão pelo território brasileiro, a ocupação formalizada e o trabalho nos setores da agroindústria e da construção civil, predominentemente formalizados. A impossibilidade de organizarem-se politicamente e de comporem sindicatos torna esses trabalhadores, mesmo que formais, objeto de intensa exploração, manifestada sob três formas principais: desconto salarial em razão de alojamentos precários, alocação preferencial nos setores de maior desgaste de energia física e assinatura, por imigrantes sem qualquer domínio do português, de contratos nesse idioma com cláusulas em que se abre mão de direitos trabalhistas e benefícios pós-demissionais.
 
Impactos da reforma
 
A Reforma Trabalhista (Projeto de Lei da Câmara nº 38/2017, sancionada no dia 13 de Julho pelo Presidente Temer), verdadeira declaração de guerra da classe patronal e seu lobby parlamentar e midiático contra a classe trabalhadora brasileira, altera mais de 100 pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e expõe trabalhadores imigrantes a uma situação ainda maior de vulnerabilidade. Dos principais pontos da reforma que incidem diretamente sob as condições de trabalho de imigrantes no Brasil, destacam-se:
 
Terceirização de atividades fim: ao permitir a terceirização de atividades fim e não somente de atividades meio, a reforma trabalhista tenderá a estender a outros setores e nacionalidades o que já ocorre com trabalhadores bolivianos no setor de costura na cidade de São Paulo, por exemplo: a sua contratação como Pessoa Jurídica e a inexistência de qualquer vínculo e obrigação trabalhista;
 
Prevalência do negociado sobre o legislado: a reforma trabalhista permitirá que os acordos, individuais ou coletivos, simplesmente ignorem a CLT – ou o que sobrou dela. Não há qualquer equidade das condições de negociação entre patrão e empregado, especialmente o empregado imigrante, muitos vezes recrutado em situações de extrema vulnerabilidade, sem domínio do idioma, impossibilitado ainda de organizar-se politicamente e fazer parte de sindicatos, em regiões de fronteira ou nos espaços temporários de acolhimento das grandes cidades. O que for acordado nessas condições valerá mais que a Lei.
 
Redução do tempo de descanso: os imigrantes, que trabalham especialmente em setores de atividade econômica marcados por elevado desgaste de energia física, estarão ainda mais sujeitos à super-exploração de sua força de trabalho em decorrência da permissão de intervalos de trabalho inferiores a 30 minutos, de jornadas mensais superiores a 220 horas mensais e diárias superiores a 12 horas seguidas sem intervalo para repouso ou alimentação, de trabalho em situações insalubres sem necessidade de licença por autoridade responsável e, por fim, se ele reclamar dessas condições e for demitido, a multa paga pelo patrão será menor do que a prevista anteriormente pela CLT.
 
O preço do assédio moral: em um país estruturalmente racista como o Brasil, os imigrantes são, frequentemente, objeto de ofensas raciais e assédios morais em ambientes de trabalho. Sob a nova legislação trabalhista, essas ocorrências serão precificadas, em proporção ao salário recebido pela vítima, geralmente muito baixos, próximos ou mesmo inferiores ao salário mínimo. O assédio moral passa a ter preço e classe social.
 
Trabalho intermitente: conhecido no exterior como “contrato zero hora” e tido como símbolo de moderno, ele nada mais é que a formalização do que há de mais arcaico nas relações de trabalho no Brasil, a contratação por demanda, remuneração com base exclusiva na demanda da empresa, que pode ser em função de horas, semanas ou meses trabalhados, sem a garantia portanto de um salário ao final do mês. A ausência de horário fixo e a submissão integral do trabalhador à empresa expressam a apropriação integral feita pela empresa do tempo do trabalhador e de sua família. Trabalhadores imigrantes são frequentemente vistos como prestadores de trabalho por demanda. Isso tenderá a se agravar com a nova lei.
 
Do formal ao precário, do precário ao escravo
 
A nova legislação trabalhista representa um ataque direto ao trabalhador e deteriora ainda mais as relações de trabalho e de remuneração no país, intensificando a super-exploração de trabalhadores brasileiros e imigrantes e tudo o que isso significa em termos de violação do valor da força de trabalho, de acidentes e lesões de trabalho, de assédio moral e terceirização do trabalhador. Em síntese, a nova legislação trabalhista consagra o trabalho precário, sufocando os mecanismos de defesa do trabalho digno.
 
O ataque inclui ainda o próprio trabalho precário e suas formas de fiscalização. Atualmente, o MTE possui apenas 2.400 auditores fiscais do trabalho para uma População Economicamente Ativa superior a 100 milhões de pessoas. As tentativas de revisão dos artigos 149 e 207 do Código Penal Brasileiro objetivam flexibilizar a definição de trabalho escravo no país e enfraquecer a identificação e o combate a ele. Consequência disso é a sistemática oposição à divulgação da Lista Suja do Trabalho Escravo – a de 2017, por exemplo, foi divulgada somente após decisão judicial que obrigou o governo a divulgar a lista de empresas e empregadores envolvidos com trabalho escravo no Brasil.
 
A essa situação deve contrapor-se a reorganização da classe trabalhadora no Brasil, de modo a incorporar o histórico de lutas e resistências que os trabalhadores imigrantes também trazem ao Brasil. Se o capitalismo explora e domina produzindo diferenças e hierarquias sociais, transformando o diverso em adversário, a construção de um modelo de desenvolvimento socialmente justo exige a unidade entre brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, negros e brancos.
 
*Luís Felipe Aires Magalhães, doutor em demografia pela Unicamp, pesquisador do Observatório das Migrações em São Paulo (Unicamp) e pós-doutorando no Observatório das Metrópoles (PUC-SP).
 

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