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'Mulheres têm carga global de trabalho maior', diz representante da ONU

Fonte: O Globo
 
Gerente de Programas da ONU Mulheres avalia que desigualdade limita oportunidades no mercado de trabalho


 
A ONU Mulheres está entre as entidades que defendem a criação de contas satélites, para que o trabalho doméstico não remunerado, feito principalmente por mulheres, seja valorizado. A entidade explica que a elaboração dessas estimativas norteará a criação de políticas públicas para que a mulher tenha mais tempo para se decidar a carreira, estudos e vida social. Há dois anos, o tema virou meta contratada pelo Brasil e todos os demais países signatários das Nações Unidas, por meio da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. O objetivo é o 5° de uma lista de 17, e prevê o alcance da igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres. Leia abaixo a entrevista com a gerente de programas da ONU Mulheres, Ana Carolina Querino.
 
Por que a ONU lidera o incentivo aos países para a criação da conta satélite do trabalho doméstico não remunerado?
 
Essas contas satélites estão apoiadas na premissa básica de desigualdade entre homens e mulheres na divisão do trabalho doméstico. Diversos estudos de uso do tempo, que são a base que dão conta da construção dessas contas, evidenciam que, mesmo entre as pessoas ocupadas, há uma desigualdade muito grande entre quem executa e não executa o trabalho doméstico. Isso é geral em todo o mundo. No Brasil, entre as mulheres ocupadas, os dados mais recentes apontam que 90% realizam afazeres domésticos, enquanto apenas 53% dos homens. As mulheres têm uma carga global de trabalho maior. Mesmo que as mulheres dediquem menos horas ao trabalho produtivo, aquele que tem o conceito reconhecido economicamente, acaba que ela tem carga global maior porque dedica muito mais horas aos afazeres domésticos. No Brasil, se somar tudo, as mulheres dedicam 55 horas semanais ao trabalho doméstico e remunerado e os homens menos, 51 horas. Esse fator ganha muita centralidade na ONU porque é refletido nos instrumentos internacionais das Nações Unidas. Na quarta conferência mundial das mulheres, ocorrida em 1995 em Pequim, China, se estabeleceu essa recomendação mais forte aos países para desenvolverem estatísticas de forma a valorizar o trabalho não remunerado das mulheres.
 
Como é no resto do mundo?
 
Globalmente, não foge muito desse percentual. É claro que alguns países no mundo têm uma participação maior no trabalho doméstico e têm outras políticas que possibilitam isso, como os países que têm licença parental, mas via de regra as mulheres têm carga global muito maior do que os homens. Os países da América Latina estão aos poucos desenvolvendo ferramentas para responder a essa premissa internacional. É um desafio grande ainda. Uns países estão mais avançados do que outros, não existe consenso na forma de medir. Então existem diversas metodologias para se medir isso e espaço internacional para se discutir essas metodologias que vem se reforçando continuamente nas agendas internacionais.
 
Os países desenvolvidos estão mais avançados em relação à América Latina?
 
Há um movimento muito forte de discussão dessas estatísticas em todo o mundo. Existem metodologias diferentes. Nos países desenvolvidos existe uma Associação Internacional de Pesquisas de Uso do Tempo, que reúne pesquisadores e institutos de estatísticas e estudiosos no tema que abarca mais os países desenvolvidos. E que têm metodologias específicas. Existe um grupo na América Latina, formado por ONU Mulheres, Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e diversos institutos nacionais de estatísticas que consolidaram, há mais de 17 anos, reuniões para discutir o tema e as estatísticas de gênero. Tem países da América Latina que já incluíram isso na constituição, como a Bolívia; tem país com lei específica para realizar essa conta satélite e têm países que já possuem uma série histórica longa da pesquisa, como o México, que é modelo nesse tema.
 
Por que o México é modelo?
 
Porque toda essa articulação internacional na América Latina começou lá para realizar as pesquisas. Eles já realizaram um maior número de pesquisas do uso do tempo e têm maior produção estatística nesse sentido e vem puxando essa discussão nos outros países.
 
Quais são as consequências dessa desigualdade?
 
Dado esse componente, que é histórico e mesmo com a evolução e entrada de mulheres no mercado de trabalho, essa desigualdade não se altera. É um fator determinante para limitar as oportunidades que as mulheres têm de ocupar postos de trabalho de melhor qualidade, de melhor remuneração ou de se dedicar aos estudos, à qualificação, à participação na vida política. É algo que está na base da desigualdade entre homens e mulheres.
 
Por que nenhum país inclui essa conta satélite no PIB?
 
Isso vem da premissa da teoria econômica tradicional. É uma teoria que não reconhece e torna invisível a chamada economia reprodutiva, as contribuições que as mulheres fazem para a economia do país. Pois a teoria econômica tradicional é fundamentada em uma concepção de trabalhador universal, que usualmente são homens, que recebem o valor remunerado e é provedor do sustento familiar. E ela é baseada em valores monetários de geração de riqueza. Por isso, as contas satélites. Tem diversos tipos de conta satélite, é por isso que ela chama assim, são aproximações para poder evidenciar e monetizar quanto do PIB corresponderia aquela atividade específica.
 
Existindo como conta satélite ela já cumpre com seu objetivo?
 
A conta satélite vai gerar uma informação para poder basear uma tomada de decisão. Ela vem agregar para evidenciar uma desigualdade e incluir na agenda pública de debate essa questão. Entrando na agenda pública contribui para respostas públicas. Por exemplo, justifica você ter políticas ou um sistema nacional de cuidados que vão permitir que as mulheres possam ter lavanderia pública, restaurantes públicos, mais creches, leis de trabalho flexíveis, teletrabalho e outras iniciativas públicas e privadas que possam permitir que as mulheres tenham mais tempo para sua vida social e profissional. Que haja co-responsabilização desse trabalho, que é essencialmente feminino.
 
Já existem exemplos pelo mundo de mudanças provocadas pela criação dessas contas satélites?
 
O Uruguai está bastante avançado no desenvolvimento desse sistema nacional de cuidados, se for pegar exemplos mais diretos e concretos. E tem também um aspecto que está por trás das justificativas de se ter diferença de idade para a aposentadoria, por gênero. Uma forma de reconhecer o trabalho que as mulheres fazem na economia reprodutiva.
 
No Brasil a reforma da previdência tem como ponto polêmico a extinção da idade diferenciada para as mulheres na aposentadoria. Se já tivéssemos essa conta no Brasil poderíamos ter mantido essa diferenciação?
 
Essa já é a justificativa que existe atualmente aqui e em outros países se usa diferentes formas de reconhecer isso. Em outros países, se dá um bônus em tempo de contribuição para as mulheres em função dessas tarefas reprodutivas. Não se traduz em diferença de idade, mas tem esse bônus. De fato, para muitas mulheres, principalmente de renda mais baixa, que estão em países que não têm um sistema nacional de cuidados, elas interrompem a sua vida laboral durante um tempo. Isso limita e interrompe a trajetória laboral das mulheres.
 
Como convencer a maioria masculina que ainda domina a maior parte de decisões de estado a realizar essa contas satélites?
 
Isso está na normativa interacional e é uma recomendação resultado de um acordo entre os estados membros da ONU (em referência à Agenda 2030). Então, esse já é um princípio básico. Não é só uma questão de mulheres pelas mulheres. E, quando falamos em desenvolvimento, com essa noção que temos agora sobre desenvolvimento sustentável, ele só vai ser alcançado de fato se mundo tiver as mesmas condições e oportunidades de contribuir e ter seu trabalho reconhecido. O argumento essencial é que para se atingir o desenvolvimento sustentável, de acordo com esse acordo que foi feito agora entre os estados membros, é fundamental que se promova o empoderamento das mulheres, por meio da Agenda 2030. Se a mulher tivesse mais condições de se dedicar a um trabalho de maior qualidade, em tempo integral e de outras formas de participar da vida pública, imagina o salto que seria ter a mesma proporção de homens e mulheres participando da economia. Já geraria muito mais riqueza para o país. Existe uma proporção muito menor de mulheres no mercado de trabalho, em relação aos homens, e essa outra parte que não está no mercado poderia, tendo esse arcabouço, participar de forma mais ampla e gerar mais riqueza. O outro ponto é que limitar a noção de trabalho e geração de riquezas a essas tarefas reconhecidamente produtivas não dá conta de todo o escopo de trabalho que é realizado num conceito mais amplo, que vem sendo revisado nas conferências internacionais da OIT e do entendimento do que é trabalho ou não e do que é a construção do desenvolvimento do país.
 
O Brasil está atrasado em relação aos outros países por ainda não ter uma conta satélite sobre esse tema?
 
O Brasil tem diversos mecanismos e inclui na Pnad algumas perguntas básicas sobre uso de tempo e está no caminho para adotar essa conta satélite. Não está mais, ou menos atrasado. Ele está agindo.
 

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