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O cancelamento administrativo de benefício previdenciário concedido em juízo

Fonte: Conjur / Gustavo Filipe Barbosa Garcia*
 
Observa-se certa controvérsia quanto aos benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade reconhecidos em juízo, por meio de decisão judicial de mérito transitada em julgado, e a questão de seu posterior cancelamento na esfera administrativa, pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
 
A relação jurídica de direito material em discussão, como é evidente, tem natureza continuativa, ou seja, prolonga-se no tempo. Ainda assim, também nesse caso, no plano processual, a sentença de mérito transitada em julgado produz coisa julgada material[1], mesmo que presentes especificidades (artigo 502 do CPC)[2].
 
Desse modo, a ação de revisão, conforme o artigo 505, inciso I, do CPC[3], por apresentar causa de pedir e pedido diversos, é perfeitamente admissível, uma vez que se trata de demanda distinta, sem afronta à coisa julgada, pois não há tríplice identidade dos elementos da ação (artigo 337, parágrafos 1º, 2º e 4º, do CPC)[4].
 
Na hipótese em que o benefício previdenciário decorrente de incapacidade tenha sido rejeitado em ação judicial anterior, a modificação no estado de fato ou de direito envolvendo o segurado, naturalmente, também permite o ajuizamento de nova demanda, pois o pedido e a causa de pedir são juridicamente diversos, o que afasta a existência de coisa julgada.
 
É preceito elementar, inerente ao Estado Democrático de Direito, que as decisões judiciais devem ser respeitadas, inclusive e especialmente pelo poder público.
 
Nesse sentido, conforme determina o artigo 2º da Constituição da República, os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.
 
Logo, a discordância relativa ao comando judicial deve ser manifestada na via judicial própria, por meio de recursos e ações autônomas de impugnação, em consonância com o devido processo legal.
 
Vale dizer, se a administração pública pretende que seja alterada a decisão judicial, ainda mais se de mérito e já transitada em julgado, deve se valer dos mecanismos processuais legítimos para impugná-la, no âmbito jurisdicional, não se admitindo que a determinação judicial seja objeto de descumprimento e modificação unilateral na esfera meramente administrativa.
 
Portanto, no caso de benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade, quando concedidos por meio de decisão judicial, sem condicionantes e limitação de tempo, o sistema jurídico prevê a ação revisional como o meio processual adequado para o INSS postular o seu cancelamento ou a sua revisão[5], não sendo permitido que a deliberação administrativa afronte decisão decorrente do exercício imperativo da jurisdição[6].
 
A questão, como se pode notar, apresenta nítida relevância e manifesta atualidade, tendo em vista a Medida Provisória 739/2016, que alterou a Lei 8.213/1991, sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, e institui o Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por Incapacidade, bem como a Portaria Conjunta 7/2016, do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário e do Instituto Nacional do Seguro Social, que estabelece procedimentos relacionados à revisão administrativa de benefícios previdenciários por incapacidade.
 
A leitura atenta dessas previsões revela a intenção de se instituir a imediata cessação dos benefícios previdenciários decorrentes de incapacidade, mesmo quando decorrentes de decisão judicial, sem prévia postulação em juízo pelo INSS, nas hipóteses em que a perícia médica, na esfera administrativa, entender pela presença da capacidade profissional, independentemente da anuência do segurado.
 
Como demonstrado, essa postura viola a garantia fundamental da coisa julgada, a qual deve ser respeitada também pela administração pública, sabendo-se que a autoexecutoriedade de certos atos administrativos não se sobrepõe à imperatividade das decisões judiciais[7].
 
O sistema jurídico, assim, deve ser analisado com isenção e rigor científico pelo intérprete, e não conforme convicções íntimas e eventuais interesses de caráter subjetivo[8].
 
Embora as normas jurídicas possam envolver certa margem de discussão quanto ao seu verdadeiro sentido e alcance, há preceitos elementares que são exigências pressupostas nas atividades de interpretação e de aplicação do Direito, como a inviabilidade de se modificar unilateralmente, na esfera meramente administrativa, decisões proferidas no legítimo exercício do poder jurisdicional.
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[1] Cf. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 98-99.
[2] Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
[3] Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença.
[4] Cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 50. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 1. p. 550.
[5] Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à Lei nº 8.212/91: custeio da seguridade social. São Paulo: Atlas, 2013. p. 245: “Se há coisa julgada em benefícios concedidos em juízo, não poderá haver revisão dos benefícios por ato da administração, pois violaria o inciso XXXVI do art. 5º da Constituição”.
[6] Previdenciário. Processo civil. Violação do art. 535 do CPC. Inexistência. Limites da devolutividade. Observância. Reformatio in pejus. Inocorrência. Auxílio doença concedido judicialmente. Cancelamento na via administrativa. Impossibilidade. Ação revisional. Imprescindibilidade. Art. 471, I, do CPC. Paralelismo das formas. Recurso Especial a que se nega provimento. 1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal examina devidamente a controvérsia posta ao seu crivo, manifestando-se sobre os pontos indubitavelmente necessários ao deslinde do litígio. 2. A Corte Regional, ao manter a sentença agregando outro fundamento ao julgado não extrapola os limites da devolutividade, uma vez que se pronuncia somente sobre o próprio mérito do recurso. 3. Ainda que se cuidasse de remessa necessária, não seria caso de reformatio in pejus, que só ocorre quando a sentença é modificada em favor da parte que não recorreu, agravando a situação do apelante. 4. Deferido o auxílio doença judicialmente, pode a autarquia previdenciária rever a concessão do benefício, uma vez tratar-se de relação jurídica continuativa, desde que por meio de ação judicial, nos termos do art. 471, inciso I, do Código de Processo Civil, e em respeito ao princípio do paralelismo das formas. 5. Recurso especial a que se nega provimento (STJ, 6ª T., REsp 1.239.006/RS, 2011/0039607-5, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 26/11/2012).
[7] Cf. SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Medida Provisória 739/16: restrições indevidas nos benefícios previdenciários por incapacidade: “No caso de benefícios por incapacidade concedidos judicialmente, corre-se o risco de violação da garantia constitucional da coisa julgada”. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2016/07/08/medida-provisoria-73916-restricoes-indevidas-nos-beneficios-previdenciarias-por-incapacidade/>.
[8] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do Direito: Teoria Geral do Direito. 3. ed. São Paulo: Método, 2016. p. 191-193.
 
*Gustavo Filipe Barbosa Garcia é livre-docente e doutor pela Faculdade de Direito da USP, pós-doutor e especialista em Direito pela Universidad de Sevilla, professor, advogado e membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e membro pesquisador do IBDSCJ. Foi juiz, procurador e auditor fiscal do Trabalho.
 

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