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Desastres ambientais sem reparações

Fonte: Valor Online / Fabrício Caldeira, Luiz Rosário e Orestes Woestehoff 

 
O gigantesco incêndio ocorrido no pátio da Ultracargo, na área portuária de Santos, em abril deste ano, mostra que a história tende a se repetir no que se refere a desastres ambientais, caso não sejam adotados mecanismos efetivos de prevenção de riscos e reparação de danos. Desta vez o fogo, que levou nove dias para ser debelado, gerando pânico na população vizinha e repercussão nacional e internacional, provocou a morte de peixes e outros organismos vivos, contaminação da água e piora significativa na qualidade do ar na região. Todo esse dano aos ecossistemas acarreta prejuízos socioeconômicos a centenas de pescadores artesanais, que historicamente são afetados por acidentes de grande porte.
 
Em 2013, no mesmo porto, ocorreu acidente semelhante com a empresa Copersucar. As ações de contenção das chamas nos terminais de açúcar causaram severos impactos ambientais e sociais. Frente ao ocorrido, o controle do Estado foi irrisório. Quase não houve aferição dos danos causados ao meio ambiente e o impacto na atividade pesqueira da região foi desprezado.
 
A Cetesb notificou a Copersucar com uma multa de R$ 250 mil. A empresa entrou com recurso administrativo contra a multa, se valendo das minúcias da legislação que os defende, solicitando a redução de 90% de seu valor original. Após dois anos, o recurso ainda está sendo avaliado. A morosidade dos órgãos ambientais, atrelada a uma burocracia nefasta, colabora para aumentar a descrença e indignação das milhares de famílias de pescadores artesanais afetadas por desastres como esse.
 
Será que a Ultracargo seguirá os mesmos procedimentos após o acidente? Por que os vultosos recursos, financeiros e humanos, não são revertidos em ações que possam efetivamente mitigar os impactos? O setor corporativo ainda parece temer o enfrentamento e diálogo com comunidades afetadas, protelando o problema na esfera administrativa e aumentando o já abarrotado e sufocado sistema judiciário brasileiro. Esse poder sequer conta com unidades judiciárias especializadas ao julgamento das questões ambientais, lacuna que torna os julgamentos pouco técnicos, mais morosos e fomenta a tão criticada insegurança jurídica na matéria ambiental.
 
É possível que o caminho para a solução passe por uma nova postura por parte dessas empresas, que deveriam investir em um processo de diálogo coletivo e de reparação de danos. Com parceiros qualificados, poderiam ajudar a construir mecanismos de monitoramento participativo que dessem conta de gerar um controle pelas próprias populações que dependem da pesca para que em momentos de crise se possa minimamente compensar os danos econômicos, pois o dano ambiental não pode ser reparado mas, sim, revertido em trabalhos de governança ou projetos que busquem mitigá-lo.
 
Dada a atual incapacidade do Estado em contabilizar os danos ambientais com precisão e rigor científico, as empresas invocam insegurança jurídica nas aplicações das multas. Por outro lado, os diversos programas ambientais atrelados aos processos de licenciamentos ambientais de centenas de empreendimentos não passam de proforma exigida pelos órgãos. Fazem uma coleta de dados que pouco ou nada colabora para que, nos momentos de crise e impasse, haja contribuição ao dimensionamento do dano social e ambiental.
 
Há uma franca necessidade de dar efetividade a esses inúmeros programas ambientais exigidos pelo Estado e financiados pelos empreendedores - decorrentes dos licenciamentos ambientais -, assim como transformá-los em sistemas de monitoramento socioambiental.
 
Fato é que o país está perdendo a grande oportunidade de controlar suas riquezas através de uma rede consistente de informação, para cuidar, por exemplo, da produção pesqueira artesanal, que gera mais de 50% do pescado consumido no Brasil. A ocupação desenfreada da costa brasileira está reduzindo os territórios pesqueiros, e, com isso, se vai muito da história e de um meio de vida ligado à natureza, que produz alimento diversificado e único.
 
Não será nem a aquacultura nem a pesca industrial que trarão essa riqueza de cores, frescor e qualidade ao cardápio de frutos do mar brasileiro, mas sim e somente a pesca artesanal e familiar composta por mais de 1,5 milhão de famílias brasileiras.
 
Diante do total descaso dos órgãos ao tratar o dano à atividade pesqueira no caso do acidente Ultracargo, um coletivo independente de advogados tem buscado a reparação aos pescadores afetados. Na decisão judicial de primeira instância, na Comarca de Santos, o magistrado prolator da sentença, que extinguiu o processo sem apreciar o direito dos pescadores, demonstrou desconhecer a realidade local e ser insensível à matéria ambiental, ao defender que o estuário santista-vicentino não tem condições de produzir pescado.
 
Curioso foi que o próprio Estado brasileiro reconheceu os danos causados ao oferecer mais de 2 mil cestas básicas aos pescadores, ao passo que o juiz sequer adentrou neste mérito, pressupondo que não se pode ou não se deve pescar no estuário de Santos. A decisão foi recorrida e aguarda decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
 
É inquestionável o fato de pescadores artesanais terem sido severamente impactados pelo desastre. Por isso, devem ser reparados à altura. Povos tradicionais, únicos em suas formas de ser, saber e viver, são amplamente protegidos por leis, decretos e convenções internacionais, mas a sociedade ainda tem dificuldade de enxergá-los com a dignidade e respeito que merecem.
 
Com inteligência, a mediação ajudaria a pacificar os problemas, podendo ser, inclusive, menos custosa do que a contratação dos escritórios de advogados. Aumentaria também a garantia jurídica das empresas porque conseguiriam pagar por um serviço com base em dados reais a partir de coletas feitas por programas sólidos de monitoramento de base participativa, incorporando o conhecimento das populações que dependem dos ambientes marinhos.



Fabrício G. Caldeira é oceanógrafo, fundador e presidente da OSCIP Instituto Maramar para a Gestão Responsável dos Ambientes Costeiros e Marinhos.
 
Luiz Afonso Buest Rosário é administrador de empresas, bacharel em economia, especialista em mediação e gestão de conflitos socioambientais, fundador e diretor executivo da Liga Brasil de Responsabilidade Socioambiental (Libres).
 
Orestes Woestehoff é presidente da Libres, instituição que integra o movimento Não Fracking Brasil, na coordenação para a Amazônia.

 

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Comentários (1)

José Arnaldo Santos
Data: 15/09/2015 - 12h15
Pergunta-se: quando um sinistro ambiental desse porte for no Porto e de responsabilidade CODESP, ela teria infraestrutura para combate-lo?

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